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cronistas leigos, cronistas religiosos ea antropafagia

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A primeira descrição de um ato antropofágico, em que a vítima é um europeu, nos é<br />

narrada por Américo Vespúcio, quando este estava em sua terceira viagem à América, no ano<br />

de 1501, na carta intitulada, Quatro Navegações – essa mesma carta é o primeiro documento<br />

que ostenta imagens junto às descrições do Novo Mundo, sendo que o impacto dessas<br />

imagens “ajudaram a introjetar abstrações fantasiosas no imaginário europeu, fazendo com<br />

que um outro mundo, habitado por homens diferentes, pudesse ser incorporado ao sistema de<br />

razões e crenças do Velho Mundo (…)” 42 :<br />

“(…) No sétimo dia, dirigindo-nos outra vez à terra firme, percebemos que aquela gente trouxera<br />

consigo as mulheres. Assim que chegamos, logo enviaram muitas esposas para falar conosco, embora<br />

não estivessem inteiramente seguras a nosso respeito. Percebendo-o, concordamos em enviar até elas<br />

um dos nossos jovens, que era valente e ágil, e para torná-las menos temerosas, entramos nos navios.<br />

Assim que desembarcou, misturou-se com elas, que, circundando-o, tocavam-no e apalpavam-no,<br />

maravilhadas por ele: eis que do monte vem uma mulher portando uma grande estaca, aproxima-se do<br />

jovem e, pelas costas, deu-lhe tamanho golpe com a estaca que, imediatamente, ele caiu morto ao chão.<br />

Num instante, outras mulheres o pegaram e pelos pés arrastaram-no ao monte. Os homens que ali<br />

estavam, descendo à praia com arcos e flechas, puseram-se a disparar e infligiram tal terror em nossa<br />

gente – os bateis em que estavam resvalavam na areia ao navegar, não podendo fugir com rapidez -, que<br />

ninguém então se lembrou de pegar em armas, de modo que muitas flechas eles disparavam até que<br />

desferimos quatro tiros de bombarda sem atingir ninguém. Ao ouvir o estrondo, todos em fuga correram<br />

de volta para o monte onde estavam as mulheres a esquartejar o jovem que haviam matado, enquanto<br />

nós olhávamos em vão, mas não era em vão que nos mostravam os pedaços que, assando num grande<br />

fogo que tinham acesso, depois comiam: também os homens, fazendo-nos sinais semelhantes, davam a<br />

entender que haviam matado e assim comido outros dois cristãos nossos, e exatamente por isso<br />

acreditamos que falavam a verdade. Esse ultraje ofendeu-nos a fundo, pois vimos com nossos próprios<br />

olhos à profanação com que trataram o morto. Por isso, mais de quarenta de nossos homens tomamos a<br />

deliberação de descer todos em terra firme e impetuosamente ataca-los para tirar vingança de ação tão<br />

desumana, de ferocidade tão bestial. Mas o capitão da frota não permitiu e, assim agindo nosso<br />

comandante, apesar de termos sofrido injúria tão grande e tão grave contra nossa vontade e com grande<br />

desonra, partimos dali, sem puni-los” 43 .<br />

Os primeiros relatos sobre a antropofagia praticada pelos indígenas – em especial aos<br />

que dizem respeito ao Brasil – estão longe de qualquer indicação da antropofagia ritual. Esses<br />

relatos apresentam “a questão como sendo os nossos índios antropófagos no sentido bestial,<br />

comendo com prazer seus inimigos e se deliciando com o gosto saboroso da carne humana” 44 ,<br />

contudo, sabemos que essa é uma visão européia que constrói a imagem do índio a partir de<br />

seus interesses (dos colonizadores):<br />

“A imagem do índio foi construída a partir da r<strong>ea</strong>lidade americana e da cultura européia. Os<br />

colonizadores pouco se preocupavam em abarcar a complexidade cultural dos povos 45 do além-mar.<br />

Observando o cotidiano indígena, selecionaram determinadas informações e relacionaram-nas ao<br />

universo cultural europeu. Os rituais de canibalismo, os comportamentos sexuais, o desprezo pelo<br />

42 VESPÚCIO, Américo. Op. cit., p. 58-59.<br />

43 Ibid., p. 104-106. Grifos do autor.<br />

44 CARNEIRO, J. Fernando. Op. cit., p. 34.<br />

45 Cada tribo se distingue por uma personalidade cultural própria, cuja natureza singular não raro se revela<br />

precisamente na atitude e nas r<strong>ea</strong>ções em face de coisas novas e estranhas. SCHADEN, Egon. O estudo do índio<br />

brasileiro – Ontem e Hoje. Op. cit., p. 398.<br />

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