cronistas leigos, cronistas religiosos ea antropafagia
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esfera o sobrenatural regia e nort<strong>ea</strong>va o mundo dos vivos, assegurando a ordem social” 144 .<br />
Esta morte é contraposta com a morte natural, a morte não desejada, pois ela não tinha nada<br />
de gloriosa, pois ao invés de “ressaltar os valores guerreiros, punha a nu a interface frágil da<br />
condição humana” 145 , por isso, segundo Fernão Cardim: “(…) alguns andam tão contentes de<br />
ser comidos que por nenhuma via consentirão ser resgatados para servir, porque dizem que é<br />
triste cousa morrer, e ser fedorento e comido de bichos” 146 . Isso é importante, pois o tipo da<br />
morte que o individuo (indígena) tiver decidirá o seu destino, pois a religião tupi-guarani<br />
gravita em torno da crença de uma outra vida após a morte, onde não há dor e miséria, ou<br />
seja, a crença da terra sem mal, sendo que, “Todas as atenções dos vivos convergiam para este<br />
lugar (…)” 147 , desse modo:<br />
“(…) os covardes e os homens que nunca mataram nenhum inimigo, o destino lhes reservara a<br />
mortalidade da alma, o apodrecimento do corpo seguido da necrofagia de Anhã, e, como castigo, a<br />
transformação em uma existência espectral, que não conservava nada de humano, somente a vida na<br />
terra. Por sua vez, aos guerreiros valorosos que aprisionaram e mataram muitos inimigos, ou, ainda as<br />
mulheres dedicadas ao preparo da carne dos prisioneiros e à sua ingestão, era permitido o ingresso a<br />
essa vida id<strong>ea</strong>l coroada pelo convívio com os antepassados, deuses e heróis-civilizadores” 148 .<br />
O processo de catequização empregado pelos jesuítas, ao desestruturar as tradições<br />
indígenas, implantou um novo modelo de além (mundo dos mortos), verticalizado e<br />
enquadrado de acordo com a topografia tripartida cristã: céu, inferno e purgatório 149 .<br />
Alterando, dessa forma, significativamente o circuito dos vivos com os mortos e vice-versa do<br />
modelo de além indígena, sobretudo na hora da morte:<br />
“Invertia-se então o circuito vivenciado pelos índios. Os vivos passariam a exercer o controle sobre os<br />
mortos, cuja função ficaria restrita a anunciar a geografia do além e alertar os vivos para as mazelas de<br />
um pecador ou, no caso dos santos, para a recompensa que estaria reservada a um bom exemplo de<br />
vida” 150 .<br />
Contudo, os indígenas não aceitaram de imediato essa mudança, ela foi lentamente<br />
incorporada as suas tradições, principalmente “quando a existência dos índios deixou de ser<br />
tribal e coletiva” 151 . Houve então, certa resistência a essa mudança, manifestada<br />
principalmente por meio da perpetuação de ritos, costumes tribais e confronto bélico. Ao<br />
144<br />
Ibid., p. 27.<br />
145<br />
Ibid., p. 28.<br />
146<br />
FERNÃO, Cardim. Tratado da terra e da gente do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP,<br />
1980, p. 96 apud KOK, Maria da Glória. Op. cit., p. 28.<br />
147<br />
KOK, Maria da Glória. Op. cit., p. 34.<br />
148<br />
Ibidem.<br />
149<br />
O purgatório, embora estivesse inserido na cartografia do além da igreja durante o século XVI, só tornou-se<br />
foco de preocupações dos índios e colonos a partir do século XVII. KOK, Maria da Glória. Op. cit., p. 150.<br />
150<br />
Ibid., p. 170.<br />
151 Ibid., p. 144.<br />
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