cronistas leigos, cronistas religiosos ea antropafagia
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voltado para o oeste, sobe no céu para perder-se no mundo superior, Floresta Invisível,<br />
Grande Savana, país dos mortos” 85 . É por tudo isso que, vemos que até hoje o esforço por<br />
racionalizar a prática dos indígenas produz ou legitima explicações bromatológicas, em<br />
função de carências de proteína, ou daquela crença de que se comendo algo se absorvem os<br />
seus caracteres ou poderes. No melhor dos casos esses expedientes apenas dão conta de um<br />
canibalismo muito pobre. O valor nutritivo da carne humana sempre esteve muito por debaixo<br />
do seu valor simbólico; o canibalismo “r<strong>ea</strong>l” foi um caso valioso, muito pouco freqüente, ao<br />
contrário do canibalismo virtual ou ideológico muito mais comum.<br />
Os padres jesuítas, embora considerassem esse costume indígena como contrário ao<br />
cristianismo, que precisava ser extirpado, conceberam uma interpretação que confere a<br />
antropofagia um caráter ritual:<br />
“De certo não era como regime alimentar: tinha caráter diferente, quer guerreiro, quer religioso. Alguns<br />
autores modernos, que escrevem sobre religiões primitivas, inclinados a ver manifestações religiosas<br />
nos usos mais comuns e salientes, parecem dar à antropofagia dos indígenas brasileiros sentido<br />
exclusivamente religioso. De fato, a cerimônia da matança em público terreiro, era pretexto para<br />
grandes ajuntamentos e festas com costumes, sempre idênticos, no espaço e no tempo. Daqui a<br />
denominação que alguns lhe dão de antropofagia ritual” 86 .<br />
Os jesuítas não fizeram isso porque eram bonzinhos ou porque queriam entender<br />
(racionalizar) essa prática, mas o fizeram por necessidade de justificar o seu trabalho de<br />
catequização, pois se concebessem a antropofagia de forma diferente, como o faziam os<br />
colonos, justificariam a escravidão do índio. Então, conferindo a antropofagia um caráter<br />
ritual – rito de vingança – os padres negam a prática desse costume pela necessidade<br />
alimentar (fome) e pelo gosto de se comer carne humana: “Esta é, em particular, a estratégia<br />
dos missionários do Brasil e do Canadá, que refutam por todos os meios a hipótese do<br />
canibalismo alimentar, a fim de salvar a alma do índio, mesmo que esta estivesse enfeitiçada<br />
por sortilégios de satã” 87 .<br />
Por isso, deve-se considerar que os viajantes europeus (<strong>cronistas</strong>), tanto <strong>leigos</strong> quanto<br />
<strong>religiosos</strong>, enfrentaram os costumes das sociedades nativas a partir dos costumes de suas<br />
sociedades. Dessa forma, os diversos agentes do colonialismo europeu, como os colonos<br />
(<strong>leigos</strong>) e os padres jesuítas (<strong>religiosos</strong>), interpretaram, ou melhor, conceberam interpretações<br />
acerca dos costumes/praticas indígenas, dentre eles, a prática antropofágica, que atendiam a<br />
seus interesses. Os colonos portugueses colocaram em dúvida a viabilidade de cristianizar os<br />
nativos. Para tal fim, procuravam ressaltar as características (atributos) bárbaras e bestiais dos<br />
85 Ibid., p. 239.<br />
86 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo II. Lisboa: Antígona, 1938, p. 35.<br />
87 LESTRINGANT, Frank. Op. cit., p. 22.<br />
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