cronistas leigos, cronistas religiosos ea antropafagia
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a memória dos antepassados para aqueles que se vingam. Além, disso, simultan<strong>ea</strong>mente, a<br />
morte em terreiro sublimava a superioridade do grupo em relação a seus inimigos 55 . Ou seja, a<br />
vingança cria um elo entre o passado e o futuro – “os que já viveram (e morreram) e os que<br />
viverão” 56 –, se configurando em uma mnemotécnica que é perpetuada por grupos inimigos e<br />
que permite há esses mesmos grupos indígenas, a consolidação de uma identidade própria em<br />
oposição há do inimigo, contudo ao se “abandonar a vingança é romper com o passado; mas<br />
é, também e sobretudo, não ter mais futuro (…). A memória aparece, portanto, não como um<br />
fim em si mesmo – lembrar os mortos –, mas como um meio, um morto, para novas<br />
vinganças” 57 , ou seja, a vingança na forma de memória é legada (herdada) as gerações futuras<br />
como uma instituição capaz de manter a integridade de uma cultura indígena.<br />
“O que é transmitido de uma geração a outra pelos Tupinambás? Nomes, não; posições cerimoniais,<br />
não. Apenas a memória da vingança, isto é, a vontade de se vingar, a identidade dos inimigos que<br />
devem ser guerr<strong>ea</strong>dos, a memória dos mortos na guerra, isto é, o que se herda é uma promessa, um lugar<br />
virtual que só é preenchido pela morte do inimigo. Herda-se uma memória. Neste sentido, a memória<br />
não é resgate de uma origem ou de uma identidade que o tempo corroeu, mas é, ao contrário, fabricação<br />
de uma identidade que se dá no tempo, produzida pelo tempo, e que não aponta para o início dos<br />
tempos, mas para seu fim” 58 .<br />
Com isso, podemos afirmar que o ritual antropofágico encontra-se intimamente<br />
associado à guerra, à religião, à economia de reciprocidade e às festas e que é em si, uma<br />
cerimônia revestida de grande solenidade bastante ritualizada, onde geralmente é<br />
exteriorizada a religiosidade indígena. 59 Ao guerreiro morto era dada, além da morte id<strong>ea</strong>l, a<br />
oportunidade (honra) de ascender à morada dos antepassados, e ao matador, abria-se a<br />
oportunidade, além de vingar seus antepassados mortos, de adquirir um novo status na aldeia<br />
– esse “guerreiro não acumulava apenas mulheres: a cada morte que inflige, vai somando os<br />
nomes que toma e vai desenhando no próprio corpo um riscado que lhe entalha a pele” 60 .<br />
Outro status que esse ritual podia marcar era o do rito de passagem para a vida adulta:<br />
“(…) o jovem só passava a ser considerado homem adulto depois de matar ritualmente um prisioneiro<br />
de guerra. O abatimento do prisioneiro de guerra, na praça da aldeia, poderia talvez ser considerado<br />
como ritual de separação, pois, logo, após isso, enquanto os outros consumiam o corpo do morto no<br />
festim antropofágico, o matador se afastava, indo para sua casa, sendo-lhe proibido ingerir a carne do<br />
individuo que matara. O matador fazia resguardo como se estivesse doente, abstinha-se de comer certas<br />
coisas, deixa crescer os cabelos, submetia-se a escarificações. Eram os ritos de transição. Quando<br />
saravam as feridas, celebravam-se as festas que marcavam a adoção de novo nome pelo matador, o que<br />
55<br />
KOK, Maria da Glória. Op. cit., p. 24.<br />
56<br />
CUNHA, Manuela Carneiro da. & CASTRO, Eduardo Viveiros de. Op. cit., p. 67.<br />
57<br />
Ibid., p. 70.<br />
58<br />
Ibid., p. 69.<br />
59<br />
MARTINS, Maria Cristina Bohn. Op. cit., p. 47.<br />
60<br />
CUNHA, Manuela Carneiro da. & CASTRO, Eduardo Viveiros de. Op. cit., p. 62.<br />
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