A interpretação das culturas - Identidades e Culturas
A interpretação das culturas - Identidades e Culturas
A interpretação das culturas - Identidades e Culturas
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
120 CAPÍTULO SEIS<br />
guerra é um inferno e não a mãe da cultura, conforme os japoneses acabaram por descobrir — embora eles |<br />
expressem o fato, sem dúvida, numa linguagem mais grandiosa.<br />
A sociologia do conhecimento deveria ser chamada sociologia do significado, pois o que é determinado l<br />
socialmente não é a natureza da concepção, mas os veículos da concepção. Henle observou, por exemplo,<br />
que numa comunidade que toma café preto galantear uma moça dizendo "você é o creme do meu café" daria<br />
unia impressão inteiramente errónea. Se a qualidade de onívoro fosse vista como uma característica mais<br />
significativa dos ursos do que a sua brutalidade desajeitada, chamar um homem de "velho urso" poderia<br />
significar não que ele era rude, mas que tinha gostos aceitáveis. 27 Retirando um exemplo de Burke, uma vez<br />
que no Japão as pessoas sorriem ao mencionar a morte de um amigo íntimo, o equivalente semântico (comportamental,<br />
ao mesmo tempo que verbal) no inglês norte-americano não é "ele sorriu", mas "sua face<br />
caiu",* pois dessa maneira estamos "traduzindo os usos sociais aceitos do Japão em usos sociais<br />
correspondentemente aceitos do Ocidente". 28 Mais próximo do reino ideológico, Sapir demonstrou que a<br />
presidência de uma comissão tem a força figurativa que nós lhe damos apenas porque asseguramos que "as<br />
funções administrativas de alguma forma rotulam uma pessoa como superior àquelas que estão sendo<br />
dirigi<strong>das</strong>"; "se as pessoas chegassem a sentir que as funções administrativas nada mais são que automatismos<br />
simbólicos, a presidência de uma comissão seria reconhecida como pouco mais do que um símbolo petrificado<br />
e o valor particular que hoje lhe é inerente tenderia a desaparecer". 29 O caso não é diferente com a "lei<br />
do trabalho escravo". Se os campos de trabalho forçado, por qualquer razão, passarem a exercer um papel<br />
menos proeminente na imagem norte-americana da União Soviética não será a veracidade do símbolo que se<br />
terá dissolvido, mas sua própria significação, sua capacidade de ser tanto verdadeira como falsa. É preciso,<br />
simplesmente, elaborar o argumento — de que o Taft-Hartley Act é uma ameaça mortal ao trabalho organizado<br />
— de outra forma.<br />
Resumindo, entre uma figura ideológica como o "ato do trabalho escravo" e as realidades sociais da vida<br />
norte-americana no seio da qual ele aparece, existe uma sutileza de influências recíprocas, que conceitos j<br />
como "distorção", "seletividade" ou "supersimplificação" são simplesmente incompetentes para formular. 30<br />
A estrutura semântica da imagem não é apenas muito mais complexa do que parece na superfície, mas uma<br />
análise dessa estrutura força a reconstituição de uma multiplicidade de conexões referenciais entre ela e a<br />
realidade social, de forma que o quadro final é o de uma configuração de significados dissimilares a partir de<br />
27 Henle, Language, Thought and Culture. pp. 4-5.<br />
*No original, hisfacefell. (N. do T.)<br />
28 K. Burke, Counterstatement (Chicago, 1975), p. 149.<br />
"Sapir, "Status of Linguistics", p. 568.<br />
30 Sem dúvida a metáfora não é o único recurso estilístico empregado pela ideologia. A metonímia ("Tudo o que tenho a oferecer l<br />
é sangue, suor e lágrimas"), a hipérbole ("O Reich dos mil anos"), a meiose ("Eu voltarei"), a sinédoque ("Wall Street"), o oximoro |<br />
("Cortina de Ferro"), a personificação ("A mão que segurava a adaga mergulhou-a nas costas do vizinho") e to<strong>das</strong> as outras figuras<br />
que os retóricos clássicos colecionaram tão arduamente e classificaram tão cuidadosamente são utiliza<strong>das</strong> muitas e muitas vezes,<br />
da mesma forma que artifícios sintáticos como a antítese, a inversão e a repetição. O mesmo ocorre com os artifícios prosódicos,<br />
como a rima, o ritmo e as aliterações, e com os artifícios literários, como a ironia, o louvor e o sarcasmo. Nem toda expressão l<br />
ideológica é figurativa. O grosso dela consiste em afirmativas bastante literais, para não dizer chãs, as quais, deixando de lado<br />
certa tendência a uma implausibilidadepnma/acje, são difíceis de distinguir dos pronunciamentos verdadeiramente científicos:<br />
"A história de to<strong>das</strong> as sociedades existentes até hoje é a história <strong>das</strong> lutas de classes"; "Toda a moralidade da Europa baseia-se nos l<br />
valores que são úteis para o rebanho", e assim por diante. Como sistema cultural, uma ideologia que se desenvolveu além do estágio<br />
dos simples slogans consiste numa estrutura intrincada de significados inter-relacionados em termos dos mecanismos semânticos l<br />
que os formulam — e dos quais a organização a dois níveis de uma metáfora isolada é apenas uma pálida representação.