A interpretação das culturas - Identidades e Culturas
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O IMPACTO DO CONCEITO DE CULTURA SOBRE o CONCEITO DE HOMEM 35<br />
verdadeira organização familiar, a descoberta do fogo e, o mais importante, embora seja ainda muito difícil<br />
identificá-la em detalhe, o apoio cada vez maior sobre os sistemas de símbolos significantes (linguagem,<br />
arte, mito, ritual) para a orientação, a comunicação e o autocontrole, tudo isso criou para o homem um novo<br />
ambiente ao qual ele foi obrigado a adaptar-se. À medida que a cultura, num passo a passo infinitesimal,<br />
acumulou-se e se desenvolveu, foi concedida uma vantagem seletiva àqueles indivíduos da população mais<br />
capazes de levar vantagem — o caçador mais capaz, o colhedor mais persistente, o melhor ferramenteiro, o<br />
líder de mais recursos — até que o que havia sido o Australopiteco proto-humano, de cérebro pequeno,<br />
tornou-se o Homo sapiens, de cérebro grande, totalmente humano. Entre o padrão cultural, o corpo e o<br />
cérebro foi criado um sistema de realimentação (feedback) positiva, no qual cada um modelava o progresso<br />
do outro, um sistema no qual a interação entre o uso crescente <strong>das</strong> ferramentas, a mudança da anatomia da<br />
mão e a representação expandida do polegar no córtex é apenas um dos exemplos mais gráficos. Submetendo-se<br />
ao governo de programas simbolicamente mediados para a produção de artefatos, organizando a vida<br />
social ou expressando emoções, o homem determinou, embora inconscientemente, os estágios culminantes<br />
do seu próprio destino biológico. Literalmente, embora inadvertidamente, ele próprio se criou.<br />
Conforme mencionei, apesar de terem ocorrido algumas mudanças importantes na anatomia bruta do<br />
género Homo durante esse período de sua cristalização — na forma do crânio, na dentição, no tamanho do<br />
polegar, e assim por diante — as mudanças muito mais importantes e dramáticas foram as que tiveram lugar,<br />
evidentemente, no sistema nervoso central. Esse foi o período em que o cérebro humano, principalmente sua<br />
parte anterior, alcançou as pesa<strong>das</strong> proporções atuais. Os problemas técnicos são aqui complicados e controvertidos;<br />
todavia, o ponto central é que, embora os Australopitecíneos tivessem um torso e uma configuração<br />
de braço não drasticamente diferente da nossa, e uma formação do pélvis e da perna antecipadora da<br />
nossa própria, a capacidade craniana era pouco maior do que a dos macacos — o que quer dizer, de um terço<br />
a metade da nossa. O que separa, aparentemente, os verdadeiros homens dos proto-homens não é, aparentemente,<br />
a forma corpórea total, mas a complexidade da organização nervosa. O período superposto de mudança<br />
cultural e biológica parece ter consistido numa intensa concentração do desenvolvimento neural e<br />
talvez, associados a ela, o refinamento de comportamentos diversos — <strong>das</strong> mãos, da locomoção bípede, etc.<br />
— para as quais os fundamentos anatómicos básicos — ombros e pulsos móveis, um ílio alargado, etc. —já<br />
haviam sido antecipados. Isso talvez não seja marcante em si mesmo, mas, combinado ao que dissemos<br />
anteriormente, sugere algumas conclusões sobre a espécie de animal que o homem é, as quais, penso, estão<br />
muito afasta<strong>das</strong> não apenas <strong>das</strong> que surgiram no século XVIII, mas também <strong>das</strong> da antropologia de apenas<br />
dez ou quinze anos atrás.<br />
Grosso modo, isso sugere não existir o que chamamos de natureza humana independente da cultura. Os<br />
homens sem cultura não seriam os selvagens inteligentes de Lord ofthe Flies, de Golding, atirados à sabedoria<br />
cruel dos seus instintos animais; nem seriam eles os bons selvagens do primitivismo iluminista, ou até<br />
mesmo, como a antropologia insinua, os macacos intrinsecamente talentosos que, por algum motivo, deixaram<br />
de se encontrar. Eles seriam monstruosidades incontroláveis, com muito poucos instintos úteis, menos<br />
sentimentos reconhecíveis e nenhum intelecto: verdadeiros casos psiquiátricos. Como nosso sistema nervoso<br />
central — e principalmente a maldição e glória que o coroam, o neocórtex — cresceu, em sua maior parte,<br />
em interação com a cultura, ele é incapaz de dirigir nosso comportamento ou organizar nossa experiência<br />
sem a orientação fornecida por sistemas de símbolos significantes. O que nos aconteceu na Era Glacial é que<br />
fomos obrigados a abandonar a regularidade e a precisão do controle genético detalhado sobre nossa conduta<br />
em favor da flexibilidade e adaptabilidade de um controle genético mais generalizado sobre ela, embora<br />
não menos real. Para obter a informação adicional necessária no sentido de agir, fomos forçados a depender<br />
cada vez mais de fontes culturais — o fundo acumulado de símbolos significantes. Tais símbolos são, por-