A interpretação das culturas - Identidades e Culturas
A interpretação das culturas - Identidades e Culturas
A interpretação das culturas - Identidades e Culturas
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
82 CAPÍTULO QUATRO<br />
deliberada e a pesquisa sistemática, a suspensão do motivo pragmático em favor da observação desinte-l<br />
ressada, a tentativa de analisar o mundo em termos de conceitos formais cuja relação com as concepções!<br />
informais do senso comum se tornam cada vez mais problemáticas — estes são os marcos da tentativa dei<br />
apreender o mundo cientificamente. Quanto à perspectiva estética a qual, sob a rubrica de "atitude!<br />
estética" tem sido talvez a mais atentamente examinada, ela envolve uma espécie diferente de suspen-l<br />
são do realismo ingénuo e do interesse prático no fato de que, em vez de questionar as credenciais dal<br />
experiência cotidiana, simplesmente se ignora essa experiência em favor de uma insistência ávida nas!<br />
aparências, um açambarcamento <strong>das</strong> superfícies, uma absorção nas coisas "por si mesmas", por assim!<br />
dizer: "A função da ilusão artística não é o 'faz-de-conta'... mas exatamente o oposto, o afastamento dal<br />
crença — a contemplação <strong>das</strong> qualidades sensoriais sem os seus significados habituais de 'aqui está ai<br />
cadeira', 'aquele é o meu telefone'... etc. É o conhecimento de que o que está diante de nós não tem um J<br />
significado prático no mundo que nos permita dedicar atenção à sua aparência como tal." 38 Como a pers-l<br />
pectiva do senso comum e a científica (ou a histórica, a filosófica e a artística), essa perspectiva, esse!<br />
"modo de ver" não é produto de alguma química cartesiana misteriosa, mas é induzida, mediada e, na l<br />
verdade, criada por meio de curiosos quase objetos — poemas, dramas, es<strong>culturas</strong>, sinfonias — os quais,!<br />
dissociando-se do mundo sólido do senso comum, adquirem o tipo especial de eloquência que só as meras]<br />
aparências podem alcançar.<br />
A perspectiva religiosa difere da perspectiva do senso comum, como já dissemos, porque se move além!<br />
<strong>das</strong> realidades da vida cotidiana em direção a outras mais amplas, que as corrigem e completam, e suai<br />
preocupação definidora não é a ação sobre essas realidades mais amplas, mas sua aceitação, a fé nelas. Ela!<br />
difere da perspectiva científica pelo fato de questionar as realidades da vida cotidiana não a partir de um l<br />
ceticismo institucionalizado que dissolve o "dado" do mundo numa espiral de hipóteses probabilísticas, mas|<br />
em termos do que é necessário para torná-las verdades mais amplas, não-hipotéticas. Em vez de desligamento,<br />
sua palavra de ordem é compromisso, em vez de análise, o encontro. Ela difere da arte, ainda, porque em l<br />
vez de afastar-se de toda a questão da fatualidade, manufaturando deliberadamente um ar de parecença e dei<br />
ilusão, ela aprofunda a preocupação com o fato e procura criar uma aura de atualidade real. A perspectivai<br />
religiosa repousa justamente nesse sentido do "verdadeiramente real" e as atividades simbólicas da religião!<br />
como sistema cultural se devotam a produzi-lo, intensificá-lo e, tanto quanto possível, torná-lo inviolável!<br />
pelas revelações discordantes da experiência secular. Mais uma vez, a essência da ação religiosa constitui,!<br />
de um ponto de vista analítico, imbuir um certo complexo específico de símbolos — da metafísica que j<br />
formulam e do estilo de vida que recomendam — de uma autoridade persuasiva.<br />
E isso nos faz chegar, finalmente, ao ritual. É no ritual — isto é, no comportamento consagrado — que í<br />
origina, de alguma forma, essa convicção de que as concepções religiosas são verídicas e de que as diretivasl<br />
religiosas são corretas. É em alguma espécie de forma cerimonial — ainda que essa forma nada mais seja l<br />
que a recitação de um mito, a consulta a um oráculo ou a decoração de um túmulo — que as disposições e!<br />
motivações induzi<strong>das</strong> pelos símbolos sagrados nos homens e as concepções gerais da ordem da existência!<br />
que eles formulam para os homens se encontram e se reforçam umas às outras. Num ritual, o mundo vivido!<br />
e o mundo imaginado fundem-se sob a mediação de um único conjunto de formas simbólicas, tornando-se!<br />
um mundo único e produzindo aquela transformação idiossincrática no sentido de realidade ao qual Santayana<br />
se referiu na epígrafe por mini transcrita. Qualquer que seja o papel que a intervenção divina possa ou não<br />
exercer na criação da fé — e não compete ao cientista manifestar-se sobre tais assuntos, de uma forma ou dei<br />
38 S. Langer, Feeling andForm (Nova York, 1953), p. 49.