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A interpretação das culturas - Identidades e Culturas

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86 CAPÍTULO QUATRO<br />

dançarinos de punhais e os desperta estalando as mandíbulas ou neles esfregando sua barba. À medida que<br />

voltam à "consciência", mas ainda em transe, ficam enraivecidos com o desaparecimento de Rangda e, i<br />

impossibilidade de atacá-la, sentem-se frustrados e voltam os punhais para o próprio peito (sem perigo para<br />

eles, já que estão em transe). Nessa ocasião, é comum ocorrer um verdadeiro pandemônio com diversos<br />

elementos da multidão de ambos os sexos, em torno do pátio, caindo em transe e tentando apunhalar-se,<br />

lutando uns com os outros, devorando frangos vivos ou excrementos, rolando convulsivamente pela lama e<br />

assim por diante, enquanto os que não estão possessos tentam tirar-lhes os punhais e mante-los numa ordem<br />

mínima. Chega um momento em que os possessos, um a um, começam a cair num estado de coma, do qua<br />

são despertados pela água benta dos sacerdotes e a grande batalha está terminada — mais uma vez o ataque<br />

foi repelido: Rangda não foi derrotada, mas também não venceu.<br />

Um bom lugar para pesquisar o significado desse ritual é na coleção de mitos, histórias e crenças<br />

explícitas que ele supostamente encena. Todavia, eles são diferentes e variáveis, e não apenas eles — para<br />

alguns Rangda é uma encarnação de Durga, o consorte maligno de Siva; para outros, é a Rainha<br />

Mahendradatta, uma figura legendária da corte estabelecida no século XI em Java; para outros ainda, ela<br />

é a líder espiritual <strong>das</strong> feiticeiras, como o sacerdote brâmane é o líder espiritual dos homens. As noções de<br />

quem (ou "o que") é Barong também são diversas e ainda mais vagas — mas elas parecem desempenhai<br />

apenas um papel secundário na percepção balinesa do drama. É no encontro direto com as duas figuras,<br />

no contexto da encenação real, que o aldeão passa a conhecê-las como realidades genuínas, no que concerne<br />

a ele. Nessa ocasião, elas não são representações de alguma coisa, mas presenças e, quando os aldeões<br />

caem em transe, eles se tornam — nadi — também parte do reino em que essas presenças existem. Perguntar<br />

a um homem quem foi Rangda, como eu fiz uma vez, se ele pensa que ela é real é fazer papel de<br />

idiota.<br />

Portanto, a aceitação da autoridade que enfatiza a perspectiva religiosa corporificada decorre da encena<br />

cão do próprio ritual. Induzindo um conjunto de disposições e motivações — um ethos — e definindo uma<br />

imagem da ordem cósmica — uma visão de mundo — por meio de um único conjunto de símbolos, a<br />

representação faz do modelo para e do modelo de aspectos da crença religiosa meras transposições de um í<br />

de outro. Rangda evoca o medo (bem como o ódio, a repugnância, a crueldade, o horror e a lascívia, embor<br />

eu não tenha podido tratar aqui dos aspectos sexuais da realização). Mas ela retrata também que:<br />

A fascinação que a figura da Feiticeira tem para a imaginação balinesa só pode ser explicada quando se reconhece qu<br />

a Feiticeira não é apenas uma figura que inspira medo — é o próprio Medo. Suas mãos, de unhas em garra, não<br />

agarram e dilaceram suas vítimas, embora as crianças que brincam de ser feiticeiras também imitem tais gestos. Ma<br />

a própria Feiticeira espalma suas mãos, com os dedos recurvados para trás, no gesto que os balineses chamam kapar<br />

termo que aplicam à súbita reação e surpresa do homem que cai de uma árvore... Quando vemos a Feiticeira como ta<br />

temerosa e ao mesmo tempo temível, só então é possível explicar sua atração, e opathos que a envolve quando dança<br />

cabeluda, intimidativa, apressada e solitária, fazendo soar sua gargalhada lúgubre e estridente. 44<br />

Por seu turno, Barong não apenas induz ao riso, mas encarna a versão balinesa do espírito cómico — um<br />

combinação definida de brincadeira, exibicionismo e extravagante amor à elegância que, juntamente com<br />

medo, é talvez o motivo dominante na vida deles. O empate inevitável da luta constante entre Rangda<br />

Barong é, portanto — para os balineses — tanto a formulação de uma concepção religiosa geral como<br />

experiência autoritária que justifica e até compele à sua aceitação.<br />

44 G. Bateson e M. Mead, Balinese Character, p. 36.

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