A interpretação das culturas - Identidades e Culturas
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A RELIGIÃO COMO SISTEMA CULTURAL 83<br />
outra — ele está, pelo menos basicamente, fora do contexto dos atos concretos de observância religiosa que<br />
a convicção religiosa faz emergir no plano humano.<br />
Entretanto, apesar de qualquer ritual religioso, não importa quão aparentemente automático ou convencional<br />
(se é verdadeiramente automático ou meramente convencional, não é religioso), envolver essa fusão<br />
simbólica do ethos com a visão do mundo, são principalmente os rituais mais elaborados e geralmente mais<br />
públicos que modelam a consciência espiritual de um povo, aqueles nos quais são reunidos, de um lado, uma<br />
gama mais ampla de disposições e motivações e, de outro, de concepções metafísicas. Utilizando um termo<br />
muito útil introduzido por Singer, podemos chamar essas cerimónias totais de "realizações culturais" e<br />
observar que elas representam não apenas o ponto no qual os aspectos disposicionais e conceptuais da vida<br />
religiosa convergem para o crente, mas também o ponto no qual pode ser melhor examinada pelo observador<br />
ainteração entre eles:<br />
Sempre que os Brâmanes Madrasi (e também os não Brâmanes, na verdade) desejavam exibir-me algum aspecto do<br />
hinduísmo, sempre se referiam, ou me convidavam a assistir, a um rito particular ou cerimónia no ciclo da vida, num<br />
festival de templo ou na esfera geral <strong>das</strong> realizações religiosas e culturais. Refletindo sobre isso no curso <strong>das</strong> minhas<br />
entrevistas e observações, descobri que as generalizações mais abstratas sobre o hinduísmo (tanto as minhas como as<br />
que ouvi) podiam ser verifica<strong>das</strong>, direta ou indiretamente, a partir dessas realizações observáveis. 39<br />
É claro que nem to<strong>das</strong> as realizações culturais são realizações religiosas e a linha entre as que o são e as<br />
realizações artísticas, ou até mesmo políticas, não é muito fácil de demarcar na prática, pois, como as formas<br />
sociais, as formas simbólicas podem servir a múltiplos propósitos. O fato é que, parafraseando ligeiramente,<br />
os indianos — "e talvez todos os povos" — parecem imaginar a sua religião "encapsulada nessas realizações<br />
distintas que eles [podem] exibir aos visitantes e a si mesmos". 40 O modo de exibição, porém, é radicalmente<br />
diferente para as duas espécies de testemunhas, fato que parece ser constantemente negligenciado por aqueles<br />
que argumentam que "a religião é uma forma de arte humana". 41 Enquanto para os "visitantes", pela<br />
natureza do caso, as realizações religiosas só podem ser apresentações de uma perspectiva religiosa particular,<br />
podendo ser aprecia<strong>das</strong> esteticamente ou disseca<strong>das</strong> cientificamente, para os participantes elas são, além<br />
disso, interpretações, materializações, realizações da religião — não apenas modelos daquilo que acreditam,<br />
mas também modelos para a crença nela. É nesses dramas plásticos que os homens atingem sua fé, na<br />
medida em que a retratam.<br />
Como exemplo apropriado, vamos abordar uma representação cultural de Bali, espetacularmente teatral<br />
— aquela na qual uma terrível feiticeira chamada Rangda inicia um combate ritual com um monstro afetuoso<br />
chamado Barong. 42 Apresentado habitualmente, embora não inevitavelmente, por ocasião <strong>das</strong> celebrações<br />
de morte no templo, o drama consiste numa dança de máscaras na qual a feiticeira — representada<br />
como uma velha viúva alquebrada, uma prostituta e uma devoradora de criancinhas — chega para espalhar<br />
39<br />
M. Singer, "The Cultural Pattern of Indian Civilization", FarEastern Quarterly, 15 (1955): pp. 23-26.<br />
40<br />
M. Singer, "The Great Tradition in a Metropolitan Center: Madras", in Traditional índia, org. por M. Singer (Filadélfia, 1958),<br />
pp. 140-182.<br />
41<br />
R. Firth, Elementos de Organização Social (Zahar Editores, Rio).<br />
42<br />
0 complexo Rangda-Barong foi exaustivamente descrito e analisado por uma série de etnógrafos extremamente capazes, e não<br />
vou tentar apresentá-lo aqui, a não ser de forma esquemática. [Cf., por ex., J. Belo, Bali: Rangda and Barong (Nova York, 1949);<br />
J. Belo, Trance in Bali (Nova York, 1960): B. DeZoete e W. Spies, Dance and Drama in Bali (Londres, 1938); G. Bateson e M.<br />
Mead, Balinese Character (Nova York, 1942); M. Covarrubias, The Island o/Bali (Nova York, 1937).] Grande parte da minha<br />
<strong>interpretação</strong> do complexo resulta de observações pessoais feitas em Bali durante os anos 1957-58.