A interpretação das culturas - Identidades e Culturas
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174 CAPÍTULO OITO<br />
quem os balineses importaram o calendário, num passado remoto. Para os balineses, o dia lunar duplo —<br />
o dia em que são dois dias ao mesmo tempo — é apenas um tipo especial de dia ocasionado pelo funcionamento<br />
dos ciclos e superciclos do calendário permutacional — um conhecimento a priori, não a<br />
posteriori.<br />
De qualquer forma, essa correlação ainda deixa um desvio de nove-onze dias em relação ao verdadeiro<br />
ano solar, e isso é compensado pela interpolação de um mês bissexto cada trinta meses, operação que,<br />
embora seja originalmente resultado da observação e dos cálculos astronómicos hindus, é aqui simplesmente<br />
mecânica. A despeito do fato de o calendário lunar-solar parecer astronómico e, portanto, parecer baseado<br />
em alguma percepção dos processos temporais naturais, relógios celestiais, isso é uma ilusão que resulta<br />
do fato de se prestar atenção à sua origem, e não aos seus usos. Esses usos estão tão afastados da observação<br />
dos céus — ou de qualquer outra experiência da passagem do tempo — como os do calendário permutacional<br />
com os quais ele está rigorosamente acertado. Como acontece com o calendário permutacional, é o sistema,<br />
automático, particularista, fundamentalmente não-métrico, mas classificatório, que diz qual é o dia (ou que<br />
espécie de dia), e não o aparecimento da Lua, para o qual se olha apenas casualmente, e que é considerado<br />
não como um determinante do calendário, mas como um reflexo dele. O que é "realmente real" é o nome —<br />
ou, neste caso, o número (de dois lugares) — do dia, seu lugar na taxonomia transempírica dos dias, não seu<br />
reflexo epifenomenal no céu. 39<br />
Na prática, o calendário lunar-solar é utilizado da mesma forma e para os mesmos tipos de coisas que o<br />
permutacional. O fato de ser fixo (embora frouxamente), torna-o mais prático nos contextos agrícolas, de<br />
forma que plantar, limpar, colher e atos similares são habitualmente regulados em termos desse calendário,<br />
e alguns templos que têm uma conexão simbólica com a agricultura ou a fertilidade celebram suas recepções<br />
aos deuses de acordo com ele. Isso significa que essas recepções só ocorrem a cada 355 dias (nos anos<br />
bissextos, cerca de 385 dias), em vez de 210. Fora isso, o padrão não é modificado.<br />
Há, ainda, um feriado principal, o Njepi ("aquietar"), que é celebrado de acordo com o calendário lunarsolar.<br />
Ele é chamado frequentemente pelos estudiosos ocidentais de "Ano Novo balinês", embora caia no<br />
princípio (isto é, na lua nova) não do primeiro, mas do décimo mês, e diga respeito não a uma renovação ou<br />
uma rededicação, mas a um acentuado medo dos demónios e uma tentativa de tranquilizar as emoções. O<br />
Njepi é observado como um estranho dia de silêncio: ninguém sai às ruas, nenhum trabalho é feito, não se<br />
acende qualquer lâmpada ou fogo e a conversação mantida nos pátios domésticos é abafada. O sistema j<br />
lunar-solar não é muito usado para propósitos de "leitura da sorte", embora os dias de lua nova e de lua cheia j<br />
sejam considerados possuidores de certas características qualitativas, sinistras no primeiro caso e auspiciosas j<br />
no segundo. De uma forma geral, o calendário lunar-solar é mais um suplemento do permutacional do que j<br />
uma alternativa para ele. Ele torna possível o emprego de uma concepção do tempo classificatória, cheia-evazia,<br />
"atemporal", em contextos onde o fato de as condições naturais variarem periodicamente têm que ter j<br />
um reconhecimento mínimo.<br />
39 De fato, como mais um empréstimo Índico, os anos também são numerados, mas — fora dos círculos sacerdotais onde a j<br />
familiaridade com eles é mais um tema de prestígio de estudo, um ornamento cultural, do que qualquer outra coisa — a enumera- i<br />
cão dos anos não desempenha virtualmente qualquer papel na utilização real do calendário, e as datas lunar-solares são da<strong>das</strong> J<br />
sempre sem se fazer menção do ano, que, com muito raras exceções, não é conhecido, nem se liga a ele. Os textos e inscriçõesj<br />
antigos às vezes indicam o ano, mas no curso ordinário da vida os balineses nunca "datam" nada, em nosso sentido do termo, anã<br />
ser, talvez, para dizer que algum acontecimento — uma erupção vulcânica, uma guerra, e assim por diante — ocorreu "quando e»|<br />
era pequeno", "quando os holandeses estavam aqui" ou, no illo tempore balinês, "nos tempos Madjapahit", etc.