A interpretação das culturas - Identidades e Culturas
A interpretação das culturas - Identidades e Culturas
A interpretação das culturas - Identidades e Culturas
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
90 CAPÍTULO QUATRO<br />
III<br />
Pra um antropólogo, a importância da religião está na capacidade de servir, tanto para um indivíduo como<br />
para um grupo, de um lado como fonte de concepções gerais, embora diferentes, do mundo, de si próprio e<br />
<strong>das</strong> relações entre elas — seu modelo da atitude — e de outro, <strong>das</strong> disposições "mentais" enraiza<strong>das</strong>, mas<br />
nem por isso menos distintas — seu modelo para a atitude. A partir dessas funções culturais fluem, por sua<br />
vez, as suas funções social e psicológica.<br />
Os conceitos religiosos espalham-se para além de seus contextos especificamente metafísicos, no sentido<br />
de fornecer um arcabouço de ideias gerais em termos <strong>das</strong> quais pode ser dada uma forma significativa a uma<br />
parte da experiência — intelectual, emocional, moral. O cristão vê o movimento nazista contra o pano de<br />
fundo da Queda, a qual, embora não explique no sentido causal, coloca-o num sentido moral, cognitivo e até<br />
afetivo. Um Zande vê a queda de um celeiro sobre um amigo ou parente contra o pano de fundo de uma<br />
emoção concreta e muito especial de bruxaria e evita, assim, tanto os dilemas filosóficos quanto a pressão<br />
psicológica do indeterminismo. Um javanês encontra no conceito do rasa ("sentido-paladar-sentimentosignificado"),<br />
emprestado e reelaborado, um meio através do qual "ver" os fenómenos coreográficos,<br />
gustativos, emocionais e políticos a uma nova luz. Uma sinopse da ordem cósmica, um conjunto de crenças<br />
religiosas, também representam um polimento no mundo mundano <strong>das</strong> relações sociais e dos acontecimentos<br />
psicológicos. Eles permitem que sejam apreendidos.<br />
Mais que um polimento, porém, tais crenças são também um gabarito. Elas não são meras intérpretes dos<br />
processos social e psicológico em termos cósmicos — e neste caso seriam filosóficos, não religiosos — mas<br />
também os modelam. Na doutrina do pecado original também está embutida uma atitude recomendada em<br />
relação à vida, uma disposição periódica e um conjunto persistente de motivações. O Zande aprende com as<br />
concepções de feitiçaria não apenas a compreender os "acidentes" aparentes como não sendo acidente algum,<br />
mas a reagir a esses acidentes espúrios com ódio pelo agente que causou e a tomar as resoluções<br />
adequa<strong>das</strong> contra ele. O rasa, além de ser um conceito de verdade, beleza e bem, é também um modo de<br />
experimentação preferido, uma espécie de desligamento sem afetação, uma variedade de brando alheamento,<br />
uma calma inatacável. As disposições e motivações que uma orientação religiosa produz lançam uma luz<br />
derivativa, lunar, sobre os aspectos sólidos da vida secular de um povo.<br />
Reconstituir o papel social e psicológico da religião não é, pois, tanto o caso de encontrar correlações<br />
entre os atos rituais específicos e os laços sociais seculares específicos — embora essas correlações existam<br />
sem dúvida, e valha a pena prosseguir nas investigações, principalmente se há algo a dizer a respeito delas<br />
Ademais, trata-se de compreender de que maneira as noções dos homens, embora implícitas, do "verdadei<br />
ramente real" e as disposições que essas noções induzem neles, dão um colorido a seu sentido do racional,<br />
do prático, do humano e do moral. Até onde isso alcança (em muitas sociedades os efeitos da religião<br />
parecem muito circunscritos, enquanto em outras eles são inteiramente difundidos), quão profundamente<br />
eles atingem (pois alguns homens e grupos de homens parecem utilizar a religião com muita superficialida<br />
de no tocante ao mundo secular enquanto outros parecem aplicar sua fé em cada ocasião, não importa quão<br />
trivial), quais os resultados efetivos (pois é muito variável o hiato entre o que a religião recomenda e o que<br />
as pessoas fazem realmente, culturalmente) — todos esses são temas cruciais na sociologia e na psicologia<br />
comparada da religião. Até mesmo o grau em que os sistemas religiosos se desenvolvem parece variar de<br />
modo extremo, e não apenas numa base evolutiva. Numa determinda sociedade, o nível de elaboração <strong>das</strong><br />
formulações simbólicas da realidade final podem alcançar graus extraordinários de complexidade e de arti