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A interpretação das culturas - Identidades e Culturas

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A RELIGIÃO COMO SISTEMA CULTURAL 89<br />

j esse fato religioso tem algumas implicações sociais cruciais — nós, periquitos, temos que nos manter juns,<br />

não nos podemos casar uns com os outros, não podemos comer os periquitos do mundo e assim por<br />

Idiante, pois agir de outra forma é agir contra a índole de todo o universo. É justamente o fato de colocar atos<br />

Jíntimos, banais, em contextos finais que torna a religião socialmente tão poderosa, ou pelo menos com<br />

j grande frequência. Ela altera, muitas vezes radicalmente, todo o panorama apresentado ao senso comum,<br />

I altera-o de tal maneira que as disposições e motivações induzi<strong>das</strong> pela prática religiosa parecem, elas mes-<br />

Imas, extremamente práticas, as únicas a serem adota<strong>das</strong> com sensatez, dada a forma como são as coisas<br />

{"realmente".<br />

Tendo "pulado" ritualmente (a imagem talvez seja demasiado atlética para os fatos verdadeiros — talvez<br />

("escorregado" seja melhor) para o arcabouço de significados que as concepções religiosas definem e, quanjdo<br />

termina o ritual, voltado novamente para o mundo do senso comum, um homem se modifica — a menos<br />

Jque, como acontece algumas vezes, a experiência deixe de ter influência. À medida que o homem muda,<br />

Jmuda também o mundo do senso comum, pois ele é visto agora como uma forma parcial de uma realidade<br />

|mais ampla que o corrige e o completa.<br />

Todavia, essa correção e essa complementação não têm o mesmo conteúdo em todo lugar, como afirmam<br />

Jalguns estudiosos de "religião comparada". A natureza do bias que a religião dá à vida comum varia com a<br />

jreligião em foco, com as disposições particulares induzi<strong>das</strong> no crente pelas concepções específicas da or-<br />

Idem cósmica que ele passa a aceitar. No nível <strong>das</strong> "grandes" religiões, reconhecem-se habitualmente carac-<br />

[terísticas orgânicas, nas quais se insiste às vezes até o fanatismo. Todavia, mesmo nos níveis tribal ou do<br />

ípovo comum — onde a individualidade <strong>das</strong> tradições religiosas é tantas vezes dissolvida em tipos disseca-<br />

Idos como "animismo", "animatismo", "totemismo", "xamanismo", "culto de ancestrais" e to<strong>das</strong> as outras<br />

jínsípi<strong>das</strong> categorias através <strong>das</strong> quais os etnógrafos da religião desvitalizam sua documentação — fica perífeitamente<br />

claro o caráter idiossincrático de como vários grupos de homens se comportam em função daquif<br />

Io que acreditam ter experimentado. Um tranquilo javanês não estaria mais à vontade num culposo Manus<br />

f do que um ativista Crow numa Java desapaixonada. E com to<strong>das</strong> as bruxas e palhaços rituais no mundo,<br />

Rangda e Barong não constituem figurações generaliza<strong>das</strong>, mas perfeitamente singulares do medo e da<br />

[diversão. As crenças dos homens são tão diversas quanto eles próprios o são — uma proposição que mantém<br />

| a mesma força quando invertida.<br />

É justamente essa particularidade do impacto dos sistemas religiosos sobre os sistemas sociais (e sobre os<br />

l sistemas de personalidade) que torna impossível uma avaliação geral do valor da religião em termos tanto<br />

morais como funcionais. Os tipos de disposições e motivações que caracterizam um homem que acaba de<br />

voltar de um sacrifício humano asteca são bem diferentes do que acaba de tirar sua máscara Kachina. Até<br />

| dentro de uma mesma sociedade, o que um "aprende" sobre o padrão essencial da vida a partir de um rito de<br />

[ feitiçaria e de uma refeição comensal terá efeitos bem diversos sobre o funcionamento social e psicológico.<br />

{Um dos maiores problemas metodológicos ao escrever cientificamente sobre religião é deixar de lado, ao<br />

[ mesmo tempo, o tom do ateu da aldeia e o do pregador da mesma aldeia, bem como seus equivalentes mais<br />

sofisticados, de forma que as implicações social e psicológica de crenças religiosas particulares possam<br />

f emergir a uma luz clara e neutra. Quando isso é feito, to<strong>das</strong> as questões sobre uma religião é "boa" ou "má",<br />

["funcional" ou "disfuncional", "reforçadora do ego" ou "produtora de ansiedade" desaparecem como as<br />

i quimeras que são, e se fica com valorizações, avaliações e diagnoses particulares em casos particulares.<br />

i Permanecem, sem dúvida, as questões pouco importantes — se é verdadeira esta ou aquela afirmativa religiosa,<br />

se é genuína esta ou aquela experiência religiosa, ou se são possíveis afirmações religiosas verdadeiras<br />

ou experiências religiosas genuínas. Todavia, tais questões não podem sequer ser formula<strong>das</strong>, quanto<br />

l mais respondi<strong>das</strong>, dentro <strong>das</strong> limitações auto-impostas pela perspectiva científica.

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