A VIDA E A ARTE DE ANTÃNIO RAMOS DE ALMEID A - Câmara ...
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A Vida e a Arte de António Ramos de Almeida | António Pedro Pita<br />
1944, aos quais devemos acrescentar Vulcão (1956), todos mergulham, mais do que na<br />
apreensão da guerra, no sentimento de que este é um mundo que acaba: “podes crer,<br />
meu amor, / É este o mundo que vai acabar”, como se lê no último fragmento de<br />
Sêde, intitulado “Profecia”. Ora, como dizer em arte a perceção da iminência histórica<br />
(que não significa cronológica) de uma transformação civilizacional, sempre pensada<br />
não se reduzindo a uma estrita dimensão política – essa é talvez a questão mais geral<br />
do neorrealismo.<br />
Não foi outro senão Joaquim Namorado que chamou a atenção para o seguinte: a<br />
“formulação ideológica” destes problemas “torna-se extremamente difícil, em virtude,<br />
primeiramente, de não existir no campo artístico um estudo aprofundado, metódico<br />
e específico destes problemas, tratados quase sempre em aspetos particulares ou à<br />
margem do desenvolvimento de outros. Os textos sobre arte e literatura dos filósofos<br />
materialistas são na maior parte dos casos fragmentos de trabalho incidindo sobre<br />
outros assuntos”.<br />
Não é tanto, pois, desconhecimento ou conhecimento precário. É de uma<br />
efetiva insuficiência teórica que deve falar-se. Mais: esta insuficiência de teoria<br />
prende-se com uma insuficiência da tradição – sobretudo, no campo literário, da<br />
tradição realista. Ainda nas palavras de Joaquim Namorado, “aos jovens escritores<br />
dos anos 30 punha-se o imperativo da criação de técnicas suscetíveis de exprimir o<br />
seu modo de entender o mundo” inspirando-se “nas tradições da nossa literatura<br />
popular [...] nas conquistas de certo romance moderno, em Michael Gold, em Istrati,<br />
em Steinbeck, Hemingway e nas experiências do romance brasileiro”; punha-se o<br />
problema de conquistar “um estilo apropriado às suas conceções do mundo e da<br />
vida; seria pedagógico comparar os modos como Mário Dionísio, Carlos de Oliveira,<br />
Namora, Cardoso Pires, Afonso Ribeiro e Abelaira atacaram e resolveram (ou não)<br />
o mesmo problema. Daí sairia pelo menos destruída a afirmação da uniformidade<br />
e realismo dos escritores neorrealistas”.<br />
É, pois, já a um neorrealismo ainda não nomeado que pertencem as referidas<br />
obras de José Marmelo e Silva, Afonso Ribeiro e António Ramos de Almeida.<br />
Que se trata, neste caso, de uma determinada intuição poética – é indubitável. A obra<br />
poética de António Ramos de Almeida não responde à letra de Maiakovski quanto<br />
à definição de “mandato social”: identificar a existência na sociedade de problemas<br />
cuja solução só pode imaginar-se através de uma obra poética. É descritiva,<br />
mantém-se no plano da denúncia e da mobilização. Mas um tal desencontro com,<br />
por exemplo, a radicalidade de Maiakovski é constituinte do neorrealismo.<br />
Mas as razões em que assenta esta (chamemos-lhe) limitação da obra poética<br />
aclaram os motivos do empenho de António Ramos de Almeida na intervenção regular<br />
no espaço público. A palavra poética é contagiosa, a palavra justa gera comunidade, é<br />
necessário alargar mais e mais o círculo da eficácia sentimental. Os “fundos” no Jornal<br />
de Notícias, crónicas escritas em cima da hora e sobre a atualidade, são vistas como<br />
conversas. Não são reflexões teóricas: mas um fluir do e no quotidiano (português ou<br />
não) capaz de pôr a claro algumas questões problemáticas.<br />
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