A Vida e a Arte de António Ramos de Almeida 66 António Ramos de Almeida e o Brasil Valéria paiva
António Ramos de Almeida e o Brasil | valéria paiva António Ramos de Almeida e o Brasil Valéria Paiva 1 receção, em Portugal, da literatura de caráter social produzida no Brasil a partir A dos anos 1930 marcou uma inflexão no contexto mais amplo de intercâmbio luso-brasileiro então em curso, restringindo em alguma medida seu escopo para incorporá-lo ao debate sobre a função social da arte e essa inflexão, por sua vez, esteve relacionada à emergência e consolidação do neorrealismo como movimento cultural. É que, em meio à polêmica levada a cabo entre os jovens escritores que viriam a ser conhecidos como neorrealistas e os escritores ligados à revista Presença, a literatura social brasileira acabaria servindo como modelo para uma “literatura humana”. Contraposta à “literatura viva”, presencista, ela contribuiria, assim, para a definição de um novo paradigma literário que pretendia ser também uma crítica filosófica da cultura, entendida como o espaço simbólico de encontro entre a sociedade e a política. O fato de que o neorrealismo não contasse ainda com uma produção literária própria foi apontado, na época, e ainda o é, hoje em dia, como uma das prováveis razões para que os jovens escritores tenham prestado tanta atenção à literatura social brasileira dos anos 1930. Ademais, revelando o caráter dinâmico de qualquer processo de receção literária, a própria polêmica entre neorrealistas e presencistas acabaria por incidir também sobre a repercussão que essa literatura teria em Portugal. Entre 1937 e 1939, são publicados inúmeros artigos que tratavam de obras e de escritores brasileiros, alguns já bastante conhecidos, como Jorge Amado e José Lins do Rêgo, e outros que se tornariam conhecidos a partir de então, como Erico Veríssimo, Graciliano Ramos e Jorge de Lima, por revistas que já podiam ser associadas, na época, ao movimento neorrealista, como Sol Nascente e O Diabo, mas também, por exemplo, pela Revista de Portugal, próxima ao grupo da Presença. António Ramos de Almeida que, muitos anos mais tarde, daria testemunho de seu envolvimento, na primeira metade da década de 1930, com a circulação de ideias que posteriormente conformariam o neorrealismo, publicaria na revista Sol Nascente, em agosto e dezembro de 1938, dois artigos que tratavam da nova literatura brasileira e dos escritores que, em suas palavras, podiam ser considerados então como seus principais intérpretes: Jorge Amado, Amando Fontes e José Lins do Rêgo 2 . Analisando os últimos três romances publicados por Jorge Amado – Capitães de Areia, Mar Morto e Jubiabá –, o que mais chamava a atenção de António Ramos era a maneira como o romancista conseguia retratar de maneira realista um ambiente de miséria e preconceitos dentro do qual, no entanto, se moviam personagens carregados de poesia e de sonho. Mais do que isso: em Jorge Amado, a opressão gerada por 67 1 Pós-doutoranda no Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX - CEIS20 da Universidade de Coimbra. 2 Sobre o testemunho de António Ramos de Almeida, ver Pita, António Pedro. Conflito e Unidade no Neo- realismo Português: arqueologia de uma problemática. Porto: Campo das Letras, 2002, especialmente p. 192-207, “O ensaísmo de António Ramos de Almeida: alguns tópicos”.