Poema em prosa: Problemática (in)<strong>de</strong>finiçãoAo contrário, segundo Clive. Sem o pressuposto <strong>de</strong> regras <strong>de</strong> composição,uma das qualida<strong>de</strong>s fundamentais do gênero está na sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> preservara natureza aci<strong>de</strong>ntal dos eventos, levando com frequência a uma expressão“sem controle”. 14 Escrita <strong>de</strong>scontrolada, acionada pelo acaso, mas ao mesmotempo com reiterado sentido <strong>de</strong> poema e <strong>de</strong> unida<strong>de</strong> estética.A continuar o raciocínio, a ambiguida<strong>de</strong> expressiva <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> escrita<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser um paradoxo semântico para se tornar uma força motriz <strong>de</strong>criação poética. Por conta da falta <strong>de</strong> parâmetros, a experimentação se fazcontínua. E tem o mérito <strong>de</strong> produzir um tipo <strong>de</strong> escrita em consonância coma sensibilida<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna (a partir <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire, em meados do século XIX),entregue ao espírito <strong>de</strong> transitorieda<strong>de</strong> e à incerteza subjetiva.É como se o gênero novo abrisse todo um campo <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s formaispara exprimir os dilemas <strong>de</strong> um tempo em constante transição. O críticoespanhol Pedro Aullón <strong>de</strong> Haro <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> esse ponto <strong>de</strong> vista, num ensaiocurto e instigante. Em sua opinião, a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> que impregna o poema emprosa, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a origem, resume-se a dois fatores: “Integração <strong>de</strong> contrários esupressão da finalida<strong>de</strong>, princípios que têm por objeto a superação <strong>de</strong> limites,a progressiva individualida<strong>de</strong>, a liberda<strong>de</strong>.” 15De fato, a mesura <strong>de</strong> integrar elementos opostos em meio ao curso dasimagens poéticas – sem mo<strong>de</strong>lo formal prévio – bem po<strong>de</strong> ser entendidacomo a essência primeira do poema em prosa. Junte-se a essa característicaa brevida<strong>de</strong>, unida<strong>de</strong> e gratuida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>stacadas por Suzanne Bernard; e aindaa dualida<strong>de</strong> poético-prosódica <strong>de</strong> Todorov, secundada da narrativida<strong>de</strong> tensa<strong>de</strong> D. Combe – e teremos <strong>de</strong>lineados alguns contornos <strong>de</strong> entendimento paraessa poética.Trata-se <strong>de</strong> uma (in)<strong>de</strong>finição um tanto genérica, por certo, mas justamentecautelosa para não incidir em princípios limitadores.Assim entendido,o poema incorpora liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão; ao mesmo tempo, em que <strong>de</strong>ve14Ibi<strong>de</strong>m, p. 287.15HARO, Pedro Aullón <strong>de</strong>. “Teoria <strong>de</strong>l poema en prosa”. In Quimera: revista <strong>de</strong> literatura, n. o 262, 2005,os. 22-25.161
Fernando Paixãoarticular inteireza e coesão entre forma e conteúdo. As palavras nascem comoque <strong>de</strong> um sopro e avançam para o campo da escrita, sem-cerimônia.Como se dá a ver, por exemplo, neste brevíssimo texto <strong>de</strong> René Char:“Linha <strong>de</strong> féÉ favor das estrelas nos convidar a falar, nos mostrar que não estamos a sós,que a aurora tem um teto e meu fogo tuas mãos.” 16Utilizando-se da frase longa – ao modo <strong>de</strong> uma linha estendida –, o poemaalinhava uma fiada <strong>de</strong> imagens que partem do céu elevado e ganham aaurora, antes <strong>de</strong> passar pelo teto e chegar às mãos amadas. A larga distânciados elementos evocados – do céu aos <strong>de</strong>dos – é inversamente proporcional àproximida<strong>de</strong> das palavras, comprimidas numa única sentença.Nada se sabe sobre o contexto ou motivo da evocação, mas é curioso percebera ênfase manifesta na expressão “é favor das estrelas”. Como se a prestezado verbo se justificasse por algum tópico anterior. E também interior ao sujeitolírico, se levarmos em conta o pórtico do título: linha <strong>de</strong> fé. Compreendidosem conjunto (enunciado e frase), temos uma larga significação sugeridana lança <strong>de</strong> um poema mínimo, certeiro.René Char soube converter em instantâneo os impulsos diversos da suaimaginação. Inventou uma linha estirada entre as estrelas e as mãos admiradas;criou efeito poético num rápido continuum. Que ressoa um toque final <strong>de</strong>elegia, <strong>de</strong>pois da frase. A poesia tem seus mistérios, caprichosos.Muitas vezes nem ao próprio escritor é dado saber por que (e como) ospoemas nascem em corpo <strong>de</strong> prosa.16Este poema em prosa faz parte, juntamente com outros três poemas versificados, do conjunto “Quatre-<strong>de</strong>-chiffre”.In CHAR, René. O nu perdido e outros poemas. São Paulo: Iluminuras, 1995, p. 54.162