Prosa - Academia Brasileira de Letras
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Dalma NascimentoA singela capelinha, junto à ponte – simbólica travessia entre dois tempos edois mundos –, dá passagem à memória <strong>de</strong> Cotaba<strong>de</strong>, região das treze al<strong>de</strong>iasgalegas, pelas quais perambulou, em criança, o seu já andarilho coração. Divididaentre duas pátrias ou entre várias, há dois anos ela visitou a terra dasorigens. Recebeu ali o título <strong>de</strong> Cidadã <strong>de</strong> Cotoba<strong>de</strong>, notícia divulgada nosjornais locais e na televisão, mas a isso o Livro das horas não se referiu.Ziguezagueando em territórios e temporalida<strong>de</strong>s tão opostas, o relógiotextual não canônico <strong>de</strong> Nélida assistematicamente ressuscita também marcasarcaicas. Contemporânea e antiga, com a sensação <strong>de</strong> que viveu várias vidas,diz ter “o passado nas costas. Envelheço como a mulher arcaica que caminhapara frente e para atrás”. (p. 156) Em outras folhas ou mo<strong>de</strong>rnos fólios, senteo peso da humana cruz, o calvário das Horas Intermediárias da Humanida<strong>de</strong>.E <strong>de</strong>monstra então a ansieda<strong>de</strong> literária, sua maior meta: “No curso da vidaque ainda me resta, pulo, aflita, do catre <strong>de</strong> pregos e engendro enredos queatendam a narrativas futuras. Meu <strong>de</strong>sassossego busca o favo do verbo comque compor uma história. Fica à espreita que o cutelo da invenção tombesobre minha cabeça sob forma <strong>de</strong> peripécias e fantasias”. (p. 198)Ao mesmo tempo, a camaleônica Nélida troca <strong>de</strong> pele e <strong>de</strong> cronologiase testemunha ser a mulher mercurial ao adaptar-se a envoltórios novos e incomuns.Olha-se no espelho e percebe-se: “Uma peça <strong>de</strong> carne que repeteo mol<strong>de</strong> consagrado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que abandonamos a caverna” (p. 95), e “exibe amesma anatomia das castelãs do século XII”. (p. 96) Rápido, vai-se transportandomentalmente ao medievo, ama o romance <strong>de</strong> Isolda e Tristão, masdotada do dom da ubiquida<strong>de</strong>, logo viaja pelo imaginário para a Grécia doSéculo <strong>de</strong> Péricles, convive com mitos helênicos, troca confidências com eles,fala com Ésquilo, Sófocles, Eurípi<strong>de</strong>s, lembra-se <strong>de</strong> Homero, o mestre do qualse proclama aprendiz, discorre sobre o sagrado <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>ia, a bárbara estrangeiraque matou os filhos por amor ao traidor Jasão. Em outro ensaio, contaa um amigo, ultrajado pela mulher que o abandonou, a história <strong>de</strong> Alcione, aque traiu o marido contra a vonta<strong>de</strong> própria.Sempre a meditar sobre a natureza humana, num átimo, mergulha no passadoliterário, mas, antes, nas primeiras páginas do livro, conta que esteve178