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A ESCRAVA ISAURA - BERNARDO GUIMARAES

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de fiar, dobadouras, e um grande tear colocado a um canto.<br />

Ao longo do salão, defronte de largas janelas guarnecidas de balaústres,<br />

que davam para um vasto pálio interior, via-se postada uma fila de fiandeiras. Eram<br />

de vinte a trinta negras, crioulas e mulatas, com suas tenras crias ao colo ou pelo<br />

chão a brincarem em redor delas.<br />

Umas conversavam, outras cantarolavam para encurtarem as longas horas<br />

de seu fastidioso trabalho. Viam-se ali caras de todas as idades, cores e feitios,<br />

desde a velha africana, trombuda e macilenta, até à roliça e luzidia crioula, desde a<br />

negra brunida como azeviche até à mulata quase branca.<br />

Entre estas últimas distinguia-se uma rapariguinha, a mais faceira e gentil<br />

que se pode imaginar nesse gênero. Esbelta e flexível de corpo, tinha o rostinho<br />

mimoso, lábios um tanto grossos, mas bem modelados, voluptuosos, úmidos, e<br />

vermelhos como boninas que acabam de desabrochar em manhã de abril. Os olhos<br />

negros não eram muito grandes, mas tinham uma viveza e travessura encantadoras.<br />

Os cabelos negros e anelados podiam estar bem na cabeça da mais branca fidalga<br />

de além-mar. Ela porém os trazia curtos e mui bem frisados à maneira dos homens.<br />

Isto longe de tirar-lhe a graça, dava à sua fisionomia zombeteira e espevitada um<br />

chispe original e encantador. Se não fossem os brinquinhos de ouro, que lhe<br />

tremiam nas pequenas e bem molduradas orelhas, e os túrgidos e ofegantes seios<br />

que como dois trêfegos cabritinhos lhe pulavam por baixo de transparente camisa,<br />

tomá-la-íeis por um rapazote maroto e petulante. Veremos em breve de que ralé era<br />

esta criança, que tinha o bonito nome de Rosa.<br />

No meio do sussurro das rodas, que giravam, das monótonas cantarolas<br />

das fiandeiras, do compasso estrépito do tear, que trabalhava incessantemente, dos<br />

guinchos e alaridos das crianças, quem prestasse atento ouvido, escutaria a<br />

seguinte conversação, travada timidamente e a meia voz em um grupo de fiandeiras,<br />

entre as quais se achava Rosa.<br />

— Minhas camaradas, — dizia a suas vizinhas uma crioula idosa, matreira e<br />

sabida em todos os mistérios da casa desde os tempos dos senhores velhos, —<br />

agora que sinhô velho morreu, e que sinhá Malvina foi-se embora para a casa de<br />

seu pai dela, é que nós vamos ver o que e rigor de cativeiro.<br />

— Como assim, tia Joaquina?!...<br />

— Como assim!... vocês verão. Vocês bem sabem, que sinhô velho não era<br />

de brinquedo; pois sim; lá diz o ditado — atrás de mim virá quem bom me fará. —<br />

Este sinhô moço Leôncio... hum!... Deus queira que me engane... quer-me parecer<br />

que vai-nos fazer ficar com saudade do tempo de sinhô velho...<br />

— Cruz! ave Maria!... não fala assim, tia Joaquina!... então é melhor matar a<br />

gente de uma vez...<br />

— Este não quer saber de fiados nem de tecidos, não; e daqui a pouco nós<br />

tudo vai pra roça puxar enxada de sol a sol, ou pra o cafezal apanhar café, e o pirai<br />

do feitor aí rente atrás de nós. Vocês verão. Ele o que quer é café, e mais café, que<br />

é o que dá dinheiro.<br />

— Também, a dizer a verdade, não sei o que será melhor, — observou<br />

outra escrava, — se estar na roça trabalhando de enxada, ou aqui pregada na roda,<br />

desde que amanhece até nove, dez horas da noite. Quer-me parecer que lã ao<br />

menos a gente fica mais à vontade.<br />

— Mais à vontade?!... que esperança! — exclamou uma terceira.<br />

— Antes, aqui, mil vezes! Aqui ao menos a gente sempre está livre do<br />

maldito feitor.<br />

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