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A ESCRAVA ISAURA - BERNARDO GUIMARAES

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— Não, não, Isaura; Deus me livre de te ofender; pelo contrário, dói-me<br />

deveras dentro do coração ver aqui misturada com esta corja de negras beiçudas e<br />

catinguentas uma rapariga como tu, que só merece pisar em tapetes e deitar em<br />

colchões de damasco. Esse senhor Leôncio tem mesmo um coração de fera.<br />

— E que te importa isso? Eu estou bem satisfeita aqui.<br />

— Qual!... não acredito; não é aqui teu lugar. Mas também por outra banda<br />

estimo bem isso.<br />

— Por quê?<br />

— Porque, enfim, Isaura, a falar-te a verdade, gosto muito de você, e aqui<br />

ao menos podemos conversar mais em liberdade...<br />

— Deveras!... declaro-te desde já que não estou disposta a ouvir tuas<br />

liberdades.<br />

— Ah! é assim! — exclamou André todo enfunado com este brusco<br />

desengano. — Então a senhora quer só ouvir as finezas dos moços bonitos lá na<br />

sala!... pois olha, minha camarada, isso nem sempre pode ser, e cá da nossa laia<br />

não és capaz de encontrar rapaz de melhor figura do que este seu criado. Ando<br />

sempre engravatado, enluvado, calçado, engomado, agaloado, perfumado, e o que<br />

mais e, — acrescentou batendo com a mão na algibeira, — com as algibeiras<br />

sempre a tinir. A Rosa, que também é uma rapariguinha bem bonita, bebe os ares<br />

por mim; mas coitada!... o que é ela ao pé de você?...<br />

Enfim, Isaura, se você soubesse quanto bem te quero, não havias de fazer<br />

tão pouco caso de mim. Se tu quisesses, olha... escuta.<br />

E dizendo isto o maroto do pajem, avizinhando-se de Isaura, foi-lhe<br />

lançando desembaraçadamente o braço em torno do colo, como quem queria falarlhe<br />

em segredo, ou talvez furtar-lhe um beijo.<br />

— Alto lá! — exclamou Isaura repelindo-o com enfado. — Está ficando<br />

bastante adiantado e atrevido. Retire-se daqui, se não irei dizer tudo ao senhor<br />

Leôncio.<br />

— Oh! Perdoa, Isaura; não há motivo para você se arrufar assim. És muito<br />

má, para quem nunca te ofendeu, e te quer tanto bem. Mas deixa estar, que o tempo<br />

há de te amaciar esse coraçãozinho de pedra.<br />

— Adeus; eu já me vou embora; mas olha lá, Isaura; pelo amor de Deus,<br />

não vá dizer nada a ninguém. Deus me livre que sinhó moço saiba do que aqui se<br />

passou; era capaz de me enforcar. O que vale, — continuou André consigo e<br />

retirando-se, — o que vale é que neste negócio parece-me que ele anda tão<br />

adiantado como eu.<br />

Pobre Isaura! Sempre e em toda parte esta contínua importunação de<br />

senhores e de escravos, que não a deixam sossegar um só momento! Como não<br />

devia viver aflito e atribulado aquele coração!<br />

Dentro de casa contava ela quatro inimigos, cada qual mais porfiado em<br />

roubar-lhe a paz da alma, e torturar-lhe o coração: três amantes, Leôncio, Belchior, e<br />

André, e uma êmula terrível e desapiedada, Rosa. Fácil lhe fora repelir as<br />

importunações e insolências dos escravos e criados; mas que seria dela, quando<br />

viesse o senhor?!...<br />

De feito, poucos instantes depois Leôncio, acompanhado pelo feitor, entrava<br />

no salão das fiandeiras. Isaura, que um momento suspendera o seu trabalho, e com<br />

o rosto escondido entre as mãos se embevecia em amargas reflexões, não se<br />

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