26.01.2018 Views

edição de 29 de janeiro de 2018

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

STORYTELLER<br />

lopurice/iStock<br />

Amparo<br />

Agra<strong>de</strong>ço a Deus por ela ter resolvido<br />

<strong>de</strong>dicar-se a mim e à minha família<br />

LuLa Vieira<br />

Eu tenho a sorte <strong>de</strong> ter em casa um ser<br />

humano excepcional. A <strong>de</strong>sgastada expressão<br />

“alma da casa” po<strong>de</strong> ser empregada,<br />

sem nenhum medo, neste caso. Estamos<br />

há mais <strong>de</strong> 20 anos juntos e, já que<br />

perdi a vergonha dos lugares comuns, me<br />

permitam dizer que agra<strong>de</strong>ço a Deus por<br />

ela ter resolvido <strong>de</strong>dicar-se a mim e à minha<br />

família com tanta <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za e entrega.<br />

Cozinhamos juntos, quando resolvo diminuir<br />

a qualida<strong>de</strong> do passadio doméstico.<br />

Nessas <strong>de</strong>liciosas ocasiões, com vocação<br />

para diplomata, jamais aponta meus erros,<br />

mas sempre dá um jeito – sem me constranger<br />

– <strong>de</strong> indicar qual foi a besteira que fiz. E,<br />

discretamente, corrigir. É também veterinária,<br />

como se po<strong>de</strong> notar pela saú<strong>de</strong> da bicharada,<br />

que lhe <strong>de</strong>dica um amor sem limites,<br />

embora respeitoso. Nunca presenciei<br />

qualquer agressão a nenhum <strong>de</strong>les, nem às<br />

galinhas. Ela consegue dialogar, por mais<br />

absurda que possa ser esta afirmação, ou<br />

seja, prefere convencer gatos e cachorros a<br />

se comportarem <strong>de</strong> forma civilizada do que<br />

se impor com gritos ou ameaças. Nenhum<br />

faz parte <strong>de</strong> torcida organizada, por exemplo,<br />

nem tem qualquer tipo <strong>de</strong> preconceito<br />

<strong>de</strong> gênero, número ou grau, espero que me<br />

entendam.<br />

Algumas vezes acho que esta boa índole<br />

<strong>de</strong>les po<strong>de</strong>ria ser um pouco menor, para<br />

que pu<strong>de</strong>ssem agir com mais rigor nas duas<br />

vezes que a casa foi assaltada. Mas prefiro<br />

um alarme eletrônico do que um maluco<br />

mor<strong>de</strong>ndo ou dando unhadas nas pessoas.<br />

Seu lado científico fica claro quando consegue<br />

interpretar um cocô animal como se<br />

fosse técnica <strong>de</strong> laboratório. Afirma, <strong>de</strong>pois<br />

<strong>de</strong> observar o aspecto da obra, que o bicho<br />

<strong>de</strong>ve ter comido isto ou aquilo ou – o que<br />

é mais comum – “seu Lula continua dando<br />

besteira para eles comerem!”. Com a casa<br />

consi<strong>de</strong>rada lotada (galinhas, três gatos,<br />

dois cachorros e um diretor <strong>de</strong> criação) acolheu<br />

uma gata vadia literalmente jogada<br />

fora por alguns <strong>de</strong>salmados. Com receio <strong>de</strong><br />

que pudéssemos não querer mais nenhuma<br />

alma irracional, cuidou do filhote até<br />

achar que ele pu<strong>de</strong>sse lutar pela sua inclusão.<br />

Depois foi-nos apresentando aos poucos.<br />

Como nossos gatos são negros e a gata<br />

malhada <strong>de</strong> branco, criou um inédito sistema<br />

<strong>de</strong> cotas em toda a fauna. Conseguiu o<br />

que queria. A gata é amiga pessoal <strong>de</strong> minha<br />

mulher, mas não conseguiu <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong><br />

ganhar um nome estranhíssimo para um<br />

gato: Clan<strong>de</strong>stina. Nome que ela reconhece<br />

como <strong>de</strong>la. Quando tem vonta<strong>de</strong>, como<br />

qualquer gato que se preze.<br />

Ela é minha afilhada <strong>de</strong> casamento, uma<br />

das poucas cerimônias que usei terno no<br />

calorão <strong>de</strong> 40 graus do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Embora<br />

tenha passado dos 50, achou que estava<br />

correndo risco <strong>de</strong> ficar solteirona e fez<br />

absoluta questão <strong>de</strong> botar tudo em pratos<br />

limpos, ou melhor, em cartoriais papeladas.<br />

Conseguiu. Quando resolve fazer algum<br />

prato especial, vai ao telefone e, por<br />

conta própria, convida meus amigos que<br />

ela sabe que adoram aquela comida, para<br />

virem a minha casa. Ops! A casa <strong>de</strong>la, claro.<br />

Assim quando vejo sendo preparada uma<br />

rabada com polenta, um escondidinho,<br />

uma galinhada ou uma moqueca, intuo<br />

que teremos companhia no almoço ou no<br />

jantar. Como são pessoas que amo, junto a<br />

fome com a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ver amigos, jamais<br />

fiz qualquer comentário que pu<strong>de</strong>sse cercear<br />

seu sagrado direito <strong>de</strong> cozinhar feliz. Se<br />

qualquer um dos meus filhos leva alguns<br />

dias para me visitar, preparam uma <strong>de</strong>sculpa<br />

para ela, não para minha mulher ou para<br />

mim, pois é <strong>de</strong>la a bronca mais direta.<br />

Outro dia <strong>de</strong>i para ela o livro Essa Menina,<br />

<strong>de</strong> Tina Correia, e seus comentários<br />

foram dignos <strong>de</strong> crítico literário. Ou muito<br />

melhores, pois foram comentários <strong>de</strong> quem<br />

enten<strong>de</strong>u o livro, que se passa numa cida<strong>de</strong><br />

do norte/nor<strong>de</strong>ste fictícia, mas que po<strong>de</strong>ria<br />

estar em qualquer lugar do topo do<br />

mundo. Tina se encantou com a agu<strong>de</strong>za<br />

do seu comentário e escreveu uma <strong>de</strong>dicatória<br />

toda especial, que fez questão <strong>de</strong> entregar<br />

pessoalmente. Gosta muito <strong>de</strong> mim,<br />

eu sei disso e ela <strong>de</strong>monstra, embora ache<br />

que eu falo palavrão <strong>de</strong>mais e bebo acima<br />

do razoável. Estou agora aqui no meu escritório<br />

doméstico, escrevendo a coluna. Não<br />

sei por que acho que o barulho das panelas<br />

que vem lá <strong>de</strong> baixo fazem um som muito<br />

parecido com a música Se todos fossem<br />

iguais a você. Um beijo, minha afilhada e<br />

amiga Maria do Amparo.<br />

Lula Vieira é publicitário, diretor da<br />

Mesa Consultoria <strong>de</strong> Comunicação,<br />

radialista, escritor, editor e professor<br />

lulavieira@grupomesa.com.br<br />

jornal propmark - <strong>29</strong> <strong>de</strong> <strong>janeiro</strong> <strong>de</strong> <strong>2018</strong> 27

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!