edição de 30 de abril de 2018
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nukleerkedi/iSTock<br />
Patricia Novais é astrofísica<br />
do IAG/USP e personagem<br />
da campanha Tech Girls, da<br />
Samsung<br />
Marçal Neto/Divulgação<br />
PaTrícia Novais<br />
Especial para o ProPMarK<br />
Nasci na periferia da Gran<strong>de</strong> São Paulo. Segunda<br />
<strong>de</strong> quatro irmãos <strong>de</strong> uma família <strong>de</strong> feirantes,<br />
estudante <strong>de</strong> escola pública, órfã <strong>de</strong> pai aos 11 anos.<br />
Não parece exatamente a receita do sucesso.<br />
Des<strong>de</strong> sempre eu ouvia que tinha nascido pobre<br />
e <strong>de</strong>veria me conformar com isso. Durante minha<br />
infância, nos anos 1990, era quase unanimida<strong>de</strong><br />
que uma pessoa <strong>de</strong> origem humil<strong>de</strong>, mulher, jamais<br />
teria acesso a uma faculda<strong>de</strong>. “É coisa <strong>de</strong> rico”, me<br />
diziam. Mas eu era teimosa. Teimava em questionar<br />
o porquê <strong>de</strong> meu irmão mais velho ter muito mais<br />
liberda<strong>de</strong>s do que eu tinha, em querer apren<strong>de</strong>r a fazer<br />
contas <strong>de</strong> cabeça para ajudar meus pais na feira,<br />
teimava em dar <strong>de</strong> ombros quando me diziam que<br />
eu não po<strong>de</strong>ria. “Isso é o que veremos”, eu pensava.<br />
Eu sempre amei apren<strong>de</strong>r: da minha mãe, her<strong>de</strong>i<br />
o gosto pelos livros e a tenacida<strong>de</strong>; do meu pai,<br />
a paixão pela matemática e pelos <strong>de</strong>safios. Mesmo<br />
que ela não tenha sequer terminado a primeira série<br />
e ele o ensino fundamental, meus pais sempre<br />
foram o meu maior exemplo na busca do conhecimento,<br />
do transformar em muito o pouco que tínhamos.<br />
Vem daí também meu amor pela astronomia,<br />
<strong>de</strong> quando a gente <strong>de</strong>itava na laje e ficava ali,<br />
comendo bolinhos <strong>de</strong> chuva e admirando a noite,<br />
as estrelas e o universo.<br />
Amar apren<strong>de</strong>r nem sempre significou que eu<br />
tinha facilida<strong>de</strong>s com isso. Demorei a apren<strong>de</strong>r a<br />
escrever, tive dificulda<strong>de</strong>s para enten<strong>de</strong>r divisão<br />
com dois algarismos no divisor, reprovei em cálculo,<br />
e era já adulta quando saquei as proparoxítonas.<br />
Mas nunca questionei a nenhum professor<br />
“por que eu tenho <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r isso?”. Eu sempre<br />
quis mais: mais conhecimento, mais <strong>de</strong>safios,<br />
mais oportunida<strong>de</strong>s, mais conquistas. Eu gostava<br />
da sensação esquisita <strong>de</strong> terminar o dia sabendo<br />
algo novo, sabendo algo diferente.<br />
A minha se<strong>de</strong> por saber me fez <strong>de</strong>sbravar mundos<br />
que ninguém ao meu redor jamais sonharia que<br />
eu conheceria. Ontem eu era a Patricia feirante, que<br />
acordava às 3h ou 4h da manhã nos fins <strong>de</strong> semana,<br />
que arrumava os legumes sobre a banca e fazia as<br />
contas dos clientes sem uso <strong>de</strong> qualquer calculadora.<br />
Hoje eu sou a Patricia física, mestra em astrofísica<br />
e, quem diria, quase doutora. Troquei os tomates<br />
e as cebolas pelas galáxias. Antes eu trabalhava com<br />
a Cristina, com o A<strong>de</strong>mir, com o Nino. Hoje eu trabalho<br />
com as Anas, com a Carla, com o Laerte, com<br />
a Claudia. As feiras <strong>de</strong> domingo foram substituídas<br />
pelo S-PLUS, J-PLUS, J-PAS e pelo CALIFA.<br />
Já são quase 15 anos na jornada da ciência, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
que coloquei meus pés pela primeira vez na USP,<br />
a maior universida<strong>de</strong> da América Latina. Durante<br />
esse período, já passei fome, já participei <strong>de</strong> jantares<br />
<strong>de</strong> conferências, já dormi no chão, já estive em<br />
hotéis incríveis, já entrei em greve, já participei <strong>de</strong><br />
eventos internacionais, enfrentei trem lotado, conheci<br />
países e pessoas.<br />
Uma vez, quando adolescente, eu li uma reportagem<br />
em que uma astrofísica dizia que ela não<br />
tinha escolhido a astronomia, mas sim que a astronomia<br />
a tinha escolhido. Naquela época eu não<br />
po<strong>de</strong>ria sequer vislumbrar meu futuro, mas guar<strong>de</strong>i<br />
aquelas palavras com muito cuidado <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong><br />
mim. E hoje eu vejo que a física, a astronomia e a<br />
ciência também me escolheram, não eu a elas. Sou<br />
capaz <strong>de</strong> olhar para trás e ver a sintonia fina nos<br />
acontecimentos da minha vida que me conduziram<br />
e me transformaram em astrofísica.<br />
A minha trajetória ainda está longe <strong>de</strong> terminar.<br />
Apesar <strong>de</strong> saber que a ciência tem sido cada vez<br />
mais sucateada e as oportunida<strong>de</strong>s estão cada vez<br />
mais escassas, eu continuo lutando pelo meu lugar<br />
na ciência. Eu sou teimosa e quero continuar assim<br />
por um bom tempo ainda.<br />
Christian Mueller/iStock<br />
Pav_1007/iStock<br />
Trifonov_Evgeniy/iSTock<br />
Transformação<br />
A infância pobre talvez não lhe garantisse uma vaga na<br />
faculda<strong>de</strong>. Ajudou a família trabalhando na feira, mas foi<br />
parar na USP. A mãe lhe garantiu o gosto pela leitura e o<br />
pai pela matemática (fotos acima). Unir as duas coisas<br />
e observar o céu (foto à esquerda) foram elementos <strong>de</strong><br />
aproximação com a profissão e para vencer obstáculos.<br />
jornal propmark - <strong>30</strong> <strong>de</strong> <strong>abril</strong> <strong>de</strong> <strong>2018</strong> 27