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edição de 30 de abril de 2018

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STORYTELLER<br />

Shaiith/iStock<br />

Dia para esquecer<br />

Ele <strong>de</strong>u uma tragada, suspirou<br />

profundamente e perguntou:<br />

“Quem foi que pediu esta merda?”<br />

LuLa Vieira<br />

Havia no Rio <strong>de</strong> Janeiro uma gran<strong>de</strong> loja<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>partamentos que a administração<br />

era tão familiar, tão familiar, que o nome<br />

do estabelecimento era exatamente o nome<br />

dos dois sócios que tocavam o negócio<br />

juntamente com uma penca <strong>de</strong> filhos,<br />

cunhados, primos, genros e noras.<br />

E foram dois jovens diretores-parentes<br />

que nos chamaram para prepararmos uma<br />

campanha <strong>de</strong> propaganda buscando uma<br />

renovação da imagem das lojas, consi<strong>de</strong>rada<br />

meio ultrapassada. Gastou-se um mês<br />

<strong>de</strong> trabalho e sugerimos até uma mudança<br />

na logomarca da companhia, visando uma<br />

reformulada geral em sua aparência.<br />

Ainda que uma agência <strong>de</strong> propaganda<br />

seja antes <strong>de</strong> tudo business, nesta hora o<br />

espírito profissional fala mais alto e o entusiasmo<br />

faz com que o bom senso monetário<br />

vá para o inferno.<br />

Contra a opinião irada do nosso pessoal<br />

<strong>de</strong> administração, torramos uma nota preta<br />

na campanha, imaginando a suprema<br />

glória <strong>de</strong> influir <strong>de</strong>cisivamente no sucesso<br />

empresarial do cliente. No dia marcado para<br />

apresentação tínhamos uma fantástica<br />

quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> peças para mostrar, incluindo<br />

um estudo <strong>de</strong> logotipia e programação<br />

visual. Coisa finíssima.<br />

Éramos uns <strong>de</strong>z na sala <strong>de</strong> reunião, nervosos<br />

como noivas, loucos para mostrar à<br />

diretoria como nós, os gênios da comunicação,<br />

iríamos garantir o sucesso duradouro e<br />

permanente para a empresa.<br />

Os dois diretores (filho e genro <strong>de</strong> um<br />

dos fundadores) estavam tão ansiosos<br />

quanto nós. Daí entrou a plateia, o resto<br />

da família, capitaneados pelo presi<strong>de</strong>nte,<br />

o dono, o chefão e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> troca <strong>de</strong> cartões<br />

e outras amabilida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>u-se início à<br />

função.<br />

A apresentação foi feita com transparências,<br />

uma longuíssima introdução, com dados<br />

<strong>de</strong> pesquisa, exemplos <strong>de</strong> casos semelhantes<br />

no mundo inteiro e um puta <strong>de</strong> um<br />

planejamento. E o dono, em silêncio, fumava<br />

um enorme charuto com cara <strong>de</strong> poucos<br />

amigos. Falamos horas, tocamos jingles,<br />

contamos piadas.<br />

Ao fim <strong>de</strong> tudo, fez-se o silêncio tradicional,<br />

cheio <strong>de</strong> expectativas. Todo mundo<br />

esperou o patrão falar. E ele <strong>de</strong>u uma tragada,<br />

suspirou profundamente e perguntou:<br />

“Quem foi que pediu esta merda?” O filho<br />

gaguejou: “Nós, papai”.<br />

O diretor-presi<strong>de</strong>nte olhou para mim e<br />

concluiu, com voz cansada: “Bem, os senhores<br />

man<strong>de</strong>m a fatura para este cidadão<br />

aqui. Desculpem o tempo que ele fez<br />

os senhores per<strong>de</strong>rem, mas eu não tenho<br />

culpa <strong>de</strong> ter um débil mental <strong>de</strong>ste como<br />

filho. Não pretendo gastar com propaganda,<br />

mudar a marca da minha empresa nem<br />

mo<strong>de</strong>rnizar porra nenhuma. Enquanto eu<br />

estiver vivo – e apontou o charuto para o<br />

filho – esta besta aqui não vai mudar nada.<br />

Depois ele vai falir à vonta<strong>de</strong>. Por enquanto<br />

não!”<br />

Daí o outro diretor resolveu ajudar:<br />

“Doutor fulano, eu acho que...” e foi interrompido<br />

pelo patrão-sogro: “Olhe aqui, fulaninho,<br />

cale a sua boca e só abra quando<br />

conseguir sustentar minha filha, me <strong>de</strong>r<br />

um neto ou fizer alguma coisa que preste<br />

além <strong>de</strong> gastar meu dinheiro. Até lá, silêncio,<br />

está bem?”<br />

Levantou-se, colocou a mão no meu ombro<br />

e continuou: “Tenho pena dos senhores.<br />

Levaram a sério estas duas pústulas<br />

irresponsáveis. O máximo que eu posso<br />

fazer é <strong>de</strong>scontar das retiradas <strong>de</strong>les algum<br />

dinheiro que diminua o prejuízo. Minhas<br />

<strong>de</strong>sculpas. Se algum dia eu enlouquecer<br />

e resolver mudar tudo aqui na casa eu os<br />

chamarei. Muito obrigado. E, mais uma<br />

vez, <strong>de</strong>sculpem”.<br />

E foi embora numa nuvem <strong>de</strong> fumo. Depois<br />

<strong>de</strong> alguns anos ele morreu. E o filho<br />

faliu. Como ele previra.<br />

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />

e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />

editor e professor<br />

lulavieira@grupomesa.com.br<br />

jornal propmark - <strong>30</strong> <strong>de</strong> <strong>abril</strong> <strong>de</strong> <strong>2018</strong> 49

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