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edição de 9 de setembro de 2019

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última página<br />

Steve Johnson/Unsplash<br />

O ghostwriter<br />

amador<br />

Stalimir Vieira<br />

job era “melhorar” o texto <strong>de</strong> alguém<br />

O para publicação. Fiz o melhor que podia.<br />

O cliente reprovou. Argumento: se sentiria<br />

um estelionatário se assinasse aquele<br />

texto. Sim, foi um estranho elogio. Perdi o<br />

negócio por causa <strong>de</strong> um maldito cacoete<br />

<strong>de</strong> criativo publicitário: a busca obsessiva<br />

por ser original, inteligente, brilhante.<br />

A vida profissional inteira tenho sido pago<br />

para isso, bem como todos os meus colegas<br />

<strong>de</strong> criação. Nem tudo na vida, porém, é um<br />

anúncio. Marcas <strong>de</strong> produtos e<br />

serviços não têm escrúpulos no<br />

que se refere à autoria <strong>de</strong> títulos,<br />

textos, conceitos ou roteiros.<br />

Pe<strong>de</strong>m, pagam, usam e está<br />

tudo certo. O mérito das pessoas<br />

físicas por trás <strong>de</strong>sses pedidos<br />

está em terem escolhido a agência<br />

certa para atendê-los. O das agências<br />

está em ter contratado os profissionais<br />

certos para criar as peças.<br />

E o dos profissionais em <strong>de</strong>monstrarem<br />

o quanto são bons naquilo que fazem. Todos<br />

dormem tranquilos.<br />

Mas, quando não há marcas nem empresas<br />

envolvidas, tudo fica muito mais sensível.<br />

Primeiro porque ninguém gosta <strong>de</strong> confessar<br />

<strong>de</strong>ficiências. Segundo porque comunicação e<br />

vaida<strong>de</strong> costumam andar <strong>de</strong> mãos dadas, seja<br />

na área em que for. Razão, porque não é simples<br />

a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> pedir ajuda, sobretudo paga.<br />

É uma espécie <strong>de</strong> confissão <strong>de</strong> que, mesmo<br />

não estando à altura <strong>de</strong> certo reconhecimento,<br />

se preten<strong>de</strong> alcançá-lo comprando o talento<br />

alheio. Interessante observar que, em se<br />

tratando <strong>de</strong> textos, a gente costuma encarar<br />

essa comercialização com certa naturalida<strong>de</strong><br />

quando comparada com a <strong>de</strong> outras artes.<br />

Mas e se fosse uma aquarela? Ou uma sonata?<br />

“Perdi o<br />

negócio Por<br />

causa <strong>de</strong><br />

um maldito<br />

cacoete <strong>de</strong><br />

criativo<br />

Publicitário”<br />

Ficaríamos mais encabulados em pagar<br />

para alguém pintar ou compor para nós?<br />

Quem sabe, num acesso <strong>de</strong> pudor, como ocorreu<br />

no caso do texto a que me referi, o cliente<br />

dissesse “não posso assinar esse quadro”.<br />

On<strong>de</strong> teria errado o artista?<br />

Na busca da perfeição? Sei bem que há<br />

ghostwriters experientes que ligam o piloto<br />

automático e a coisa toda flui naturalmente,<br />

para a satisfação <strong>de</strong> todos os envolvidos.<br />

Acabei, aliás, <strong>de</strong> ler um anúncio do ramo,<br />

oferecendo “os melhores do Brasil” e garantindo<br />

“entregas no prazo”. Javier<br />

Marías, gran<strong>de</strong> escritor espanhol,<br />

tem um personagem maravilhoso<br />

em Mañana en la batalla piensa<br />

em mi, que é “escritor fantasma”,<br />

profissional a quem os clientes<br />

também se referem como “negro”.<br />

Mas qual é a diferença entre um<br />

redator publicitário e um ghostwriter?<br />

Simples. Nós, publicitários,<br />

aten<strong>de</strong>mos, em primeiro<br />

lugar, ao nosso ego; aos ghostwriters, cabe<br />

aten<strong>de</strong>r ao ego dos clientes.<br />

Quando recebi a incumbência <strong>de</strong> “melhorar”<br />

aquele texto, comecei o trabalho simplesmente<br />

ignorando o que tinha sido escrito,<br />

como se fosse alguma coisa absolutamente<br />

<strong>de</strong>sprezível e me lancei obstinadamente a fazer<br />

“o texto verda<strong>de</strong>iramente bom”. Atitu<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> uma arrogância absurda.<br />

O cliente reprovar o trabalho me saiu barato.<br />

Fosse eu, teria dado uma porrada no filho<br />

da puta do redator presunçoso.<br />

Afinal, se não existe prêmio para o ghostwriter<br />

do ano, nem medalha <strong>de</strong> ouro para o<br />

melhor texto escrito para outro assinar, por<br />

que diabos dar protagonismo para o ego num<br />

job <strong>de</strong>sses?<br />

Stalimir Vieira é diretor da Base Marketing<br />

stalimircom@gmail.com<br />

58 9 <strong>de</strong> <strong>setembro</strong> <strong>de</strong> <strong>2019</strong> - jornal propmark

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