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edição de 18 de maio de 2020

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STORYTELLER<br />

Billy Huynh/Unsplash<br />

Um estagiário<br />

no céu<br />

Nem olharam para mim. Mandaram eu<br />

<strong>de</strong>ixar o envelope na caixa e obrigado<br />

LULA VIEIRA<br />

tédio é o pior castigo que um homem<br />

O po<strong>de</strong> ter. Nestes tempos <strong>de</strong> coronavírus,<br />

mais que lutar contra a eventual contaminação,<br />

coisa que minha mulher tem se revelado<br />

profissional, luto contra o enfado. Minha casa<br />

não é pequena nem são pequenas as tarefas<br />

que tenho para cumprir. Mas o simples fato<br />

<strong>de</strong> não po<strong>de</strong>r ir à rua já é pena suficiente para<br />

enlouquecer um ser humano. Tenho livros<br />

para editar, artigos para escrever, parecer para<br />

dar. Mas faz mais <strong>de</strong> 45 dias que meu mundo<br />

se resume à minha casa e seu terreno. Faz<br />

45 dias que não entro num boteco. Não aparece<br />

nenhum amigo para almoçar ou jantar.<br />

Estou só, como um torcedor da Portuguesa.<br />

E semana passada eu prometi a você que ia<br />

parar com a chora<strong>de</strong>ira. Não escreveria mais<br />

sobre estes tempos impensáveis. Então contarei<br />

uma história do passado. Uma do baú.<br />

Velha, muito velha, dos tempos da JMM. Mas<br />

muito boa. Pois é, naquele tempo nós tínhamos<br />

a conta da Lí<strong>de</strong>r Taxi Aéreo (A Lí<strong>de</strong>r vai<br />

lá, lembram-se?). E tínhamos também um pedaço<br />

da Fiat, ainda na fase da implantação da<br />

fábrica em Betim. Ambas com se<strong>de</strong> em Belo<br />

Horizonte.<br />

Certo dia eu precisei ir a Minas apresentar<br />

à Fiat um folheto que mostrava o impacto econômico<br />

da chegada da montadora no estado.<br />

Ao mesmo tempo, um boy da JMM (naquela<br />

época existiam office-boys, que os mais novos<br />

nem sabem para que serviam. Hoje o boy<br />

se chama motoqueiro). Eu dizia que um boy<br />

foi encarregado <strong>de</strong> levar na Lí<strong>de</strong>r um material<br />

qualquer, coisa <strong>de</strong> rotina, para ser entregue<br />

no aeroporto, colocado no malote e enviado<br />

à se<strong>de</strong> em Belo Horizonte. A criação, como<br />

<strong>de</strong> hábito, atrasou um pouquinho e, para não<br />

per<strong>de</strong>r a hora da entrega da campanha, o dono<br />

da agência, João Moacir <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros, acabou<br />

aceitando a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que alugássemos um<br />

jatinho para que eu fosse apresentar a tempo<br />

o material da Fiat. Doeu-lhe como um parto,<br />

mas não tinha outro remédio. Enquanto isso,<br />

o tal boy que ia levar o material na Lí<strong>de</strong>r teve<br />

um problema qualquer e acharam um estagiário<br />

da criação para dar um pulinho no hangar<br />

da Lí<strong>de</strong>r no Santos Dumont e <strong>de</strong>spachar<br />

a correspondência. Coisa tão primária que<br />

ninguém se preocupou em ficar explicando<br />

os <strong>de</strong>talhes da missão. Alguém disse ao estagiário:<br />

“vai para o aeroporto e manda entregar<br />

esta merda em Belo Horizonte. Vai a jato!”<br />

Ao mesmo tempo (olha o <strong>de</strong>stino tecendo das<br />

suas), minha secretária (on<strong>de</strong> andará a Beth?)<br />

reservou um jatinho, também na Lí<strong>de</strong>r, para<br />

me levar a BH com todas as honras <strong>de</strong> cliente<br />

VIP, parceiro <strong>de</strong> negócios e – porra – diretor<br />

<strong>de</strong> criação da gloriosa JMM. Daí <strong>de</strong>u-se a merda.<br />

O pistoleta (era uma expressão <strong>de</strong> época<br />

introduzida no vocabulário pelo glorioso Geraldo<br />

Alonso) do estagiário chegou no hangar<br />

da Lí<strong>de</strong>r meia hora antes do horário reservado<br />

para mim e se apresentou: “eu sou da JMM!”<br />

Não <strong>de</strong>ram tempo para ele respirar. Levaram-<br />

-no para um jatinho já com as turbinas quentinhas<br />

e <strong>de</strong>colaram. E lá foi o estagiário <strong>de</strong>slumbrado,<br />

comendo empadinhas e bebendo<br />

whisky escocês, na primeira viagem <strong>de</strong> avião<br />

da sua vida. Mal o infeliz aterrou em Pampulha,<br />

cheguei na Lí<strong>de</strong>r do Rio.<br />

Nem olharam para mim. Mandaram eu <strong>de</strong>ixar<br />

o envelope na caixa e obrigado. Depois <strong>de</strong><br />

meia dúzia <strong>de</strong> palavrões consegui <strong>de</strong>sfazer o<br />

engano. O puto do estagiário já estava em BH<br />

reclamando que a água Perrier que serviram<br />

a bordo não era com gás. Em compensação a<br />

reunião dos italianos da Fiat já começava e<br />

eu estava no Rio. Um dos diretores chegou a<br />

ficar tão puto que disse que o Brasil era uma<br />

esculhambação. Segundo ele próprio, igual à<br />

Itália. Conclusão: meia hora <strong>de</strong>pois dois jatinhos<br />

se cruzaram nos céus. Um levando um<br />

gordo à beira <strong>de</strong> um infarto, bebendo Logan<br />

pelo gargalo para não morrer, outro trazendo<br />

um estagiário <strong>de</strong> volta ao Rio sabendo que<br />

lá em baixo a dura rotina o esperava. Diz a<br />

lenda que o sacana, como não tinha pedido<br />

a ninguém para ser transportado com toda<br />

mordomia, ainda ofereceu carona a duas moças<br />

que vieram visitar umas primas em Copacabana.<br />

Sem a menor culpa, o cara, além<br />

da mordomia <strong>de</strong> praxe, exigiu champanhe a<br />

bordo, não prevista no contrato, coisa que o<br />

Me<strong>de</strong>iros se recusou a pagar. E que significou<br />

uns bons três meses <strong>de</strong> salário do rapaz. Um<br />

dia eu estava trabalhando e o tal estagiário,<br />

hoje um profissional <strong>de</strong> sucesso, chegou e<br />

me confi<strong>de</strong>nciou: “sabe aquelas moças que<br />

eu <strong>de</strong>i carona no jatinho? Elas me ligaram no<br />

dia seguinte, me convidando para sair. Fui <strong>de</strong><br />

ônibus e levei elas pro Bob’s. Nunca mais me<br />

ligaram...” concluiu filosoficamente. E acrescentou,<br />

olhando a fumaça do cigarro: “tudo<br />

gente interesseira”. Outro dia ele me disse<br />

que achava estágio uma coisa importantíssima<br />

não só para apren<strong>de</strong>r a profissão, mas para<br />

conhecer a vida. Sábias palavras.<br />

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />

e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />

editor e professor<br />

lulavieira.luvi@gmail.com<br />

<strong>18</strong> <strong>18</strong> <strong>de</strong> <strong>maio</strong> <strong>de</strong> <strong>2020</strong> - jornal propmark

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