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STORYTELLER<br />
Billy Huynh/Unsplash<br />
Um estagiário<br />
no céu<br />
Nem olharam para mim. Mandaram eu<br />
<strong>de</strong>ixar o envelope na caixa e obrigado<br />
LULA VIEIRA<br />
tédio é o pior castigo que um homem<br />
O po<strong>de</strong> ter. Nestes tempos <strong>de</strong> coronavírus,<br />
mais que lutar contra a eventual contaminação,<br />
coisa que minha mulher tem se revelado<br />
profissional, luto contra o enfado. Minha casa<br />
não é pequena nem são pequenas as tarefas<br />
que tenho para cumprir. Mas o simples fato<br />
<strong>de</strong> não po<strong>de</strong>r ir à rua já é pena suficiente para<br />
enlouquecer um ser humano. Tenho livros<br />
para editar, artigos para escrever, parecer para<br />
dar. Mas faz mais <strong>de</strong> 45 dias que meu mundo<br />
se resume à minha casa e seu terreno. Faz<br />
45 dias que não entro num boteco. Não aparece<br />
nenhum amigo para almoçar ou jantar.<br />
Estou só, como um torcedor da Portuguesa.<br />
E semana passada eu prometi a você que ia<br />
parar com a chora<strong>de</strong>ira. Não escreveria mais<br />
sobre estes tempos impensáveis. Então contarei<br />
uma história do passado. Uma do baú.<br />
Velha, muito velha, dos tempos da JMM. Mas<br />
muito boa. Pois é, naquele tempo nós tínhamos<br />
a conta da Lí<strong>de</strong>r Taxi Aéreo (A Lí<strong>de</strong>r vai<br />
lá, lembram-se?). E tínhamos também um pedaço<br />
da Fiat, ainda na fase da implantação da<br />
fábrica em Betim. Ambas com se<strong>de</strong> em Belo<br />
Horizonte.<br />
Certo dia eu precisei ir a Minas apresentar<br />
à Fiat um folheto que mostrava o impacto econômico<br />
da chegada da montadora no estado.<br />
Ao mesmo tempo, um boy da JMM (naquela<br />
época existiam office-boys, que os mais novos<br />
nem sabem para que serviam. Hoje o boy<br />
se chama motoqueiro). Eu dizia que um boy<br />
foi encarregado <strong>de</strong> levar na Lí<strong>de</strong>r um material<br />
qualquer, coisa <strong>de</strong> rotina, para ser entregue<br />
no aeroporto, colocado no malote e enviado<br />
à se<strong>de</strong> em Belo Horizonte. A criação, como<br />
<strong>de</strong> hábito, atrasou um pouquinho e, para não<br />
per<strong>de</strong>r a hora da entrega da campanha, o dono<br />
da agência, João Moacir <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros, acabou<br />
aceitando a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que alugássemos um<br />
jatinho para que eu fosse apresentar a tempo<br />
o material da Fiat. Doeu-lhe como um parto,<br />
mas não tinha outro remédio. Enquanto isso,<br />
o tal boy que ia levar o material na Lí<strong>de</strong>r teve<br />
um problema qualquer e acharam um estagiário<br />
da criação para dar um pulinho no hangar<br />
da Lí<strong>de</strong>r no Santos Dumont e <strong>de</strong>spachar<br />
a correspondência. Coisa tão primária que<br />
ninguém se preocupou em ficar explicando<br />
os <strong>de</strong>talhes da missão. Alguém disse ao estagiário:<br />
“vai para o aeroporto e manda entregar<br />
esta merda em Belo Horizonte. Vai a jato!”<br />
Ao mesmo tempo (olha o <strong>de</strong>stino tecendo das<br />
suas), minha secretária (on<strong>de</strong> andará a Beth?)<br />
reservou um jatinho, também na Lí<strong>de</strong>r, para<br />
me levar a BH com todas as honras <strong>de</strong> cliente<br />
VIP, parceiro <strong>de</strong> negócios e – porra – diretor<br />
<strong>de</strong> criação da gloriosa JMM. Daí <strong>de</strong>u-se a merda.<br />
O pistoleta (era uma expressão <strong>de</strong> época<br />
introduzida no vocabulário pelo glorioso Geraldo<br />
Alonso) do estagiário chegou no hangar<br />
da Lí<strong>de</strong>r meia hora antes do horário reservado<br />
para mim e se apresentou: “eu sou da JMM!”<br />
Não <strong>de</strong>ram tempo para ele respirar. Levaram-<br />
-no para um jatinho já com as turbinas quentinhas<br />
e <strong>de</strong>colaram. E lá foi o estagiário <strong>de</strong>slumbrado,<br />
comendo empadinhas e bebendo<br />
whisky escocês, na primeira viagem <strong>de</strong> avião<br />
da sua vida. Mal o infeliz aterrou em Pampulha,<br />
cheguei na Lí<strong>de</strong>r do Rio.<br />
Nem olharam para mim. Mandaram eu <strong>de</strong>ixar<br />
o envelope na caixa e obrigado. Depois <strong>de</strong><br />
meia dúzia <strong>de</strong> palavrões consegui <strong>de</strong>sfazer o<br />
engano. O puto do estagiário já estava em BH<br />
reclamando que a água Perrier que serviram<br />
a bordo não era com gás. Em compensação a<br />
reunião dos italianos da Fiat já começava e<br />
eu estava no Rio. Um dos diretores chegou a<br />
ficar tão puto que disse que o Brasil era uma<br />
esculhambação. Segundo ele próprio, igual à<br />
Itália. Conclusão: meia hora <strong>de</strong>pois dois jatinhos<br />
se cruzaram nos céus. Um levando um<br />
gordo à beira <strong>de</strong> um infarto, bebendo Logan<br />
pelo gargalo para não morrer, outro trazendo<br />
um estagiário <strong>de</strong> volta ao Rio sabendo que<br />
lá em baixo a dura rotina o esperava. Diz a<br />
lenda que o sacana, como não tinha pedido<br />
a ninguém para ser transportado com toda<br />
mordomia, ainda ofereceu carona a duas moças<br />
que vieram visitar umas primas em Copacabana.<br />
Sem a menor culpa, o cara, além<br />
da mordomia <strong>de</strong> praxe, exigiu champanhe a<br />
bordo, não prevista no contrato, coisa que o<br />
Me<strong>de</strong>iros se recusou a pagar. E que significou<br />
uns bons três meses <strong>de</strong> salário do rapaz. Um<br />
dia eu estava trabalhando e o tal estagiário,<br />
hoje um profissional <strong>de</strong> sucesso, chegou e<br />
me confi<strong>de</strong>nciou: “sabe aquelas moças que<br />
eu <strong>de</strong>i carona no jatinho? Elas me ligaram no<br />
dia seguinte, me convidando para sair. Fui <strong>de</strong><br />
ônibus e levei elas pro Bob’s. Nunca mais me<br />
ligaram...” concluiu filosoficamente. E acrescentou,<br />
olhando a fumaça do cigarro: “tudo<br />
gente interesseira”. Outro dia ele me disse<br />
que achava estágio uma coisa importantíssima<br />
não só para apren<strong>de</strong>r a profissão, mas para<br />
conhecer a vida. Sábias palavras.<br />
Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />
e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />
editor e professor<br />
lulavieira.luvi@gmail.com<br />
<strong>18</strong> <strong>18</strong> <strong>de</strong> <strong>maio</strong> <strong>de</strong> <strong>2020</strong> - jornal propmark