VÁRIOS AUTORES - Projeto de Mão em Mão
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ambrose bierce<br />
tou cuidar <strong>de</strong>la, esperando que se recuperasse, mas, ao<br />
nal do terceiro dia, a mulher per<strong>de</strong>u a consciência e, s<strong>em</strong><br />
jamais, ao que parece, tê-la recuperado, faleceu.<br />
Pelo que sab<strong>em</strong>os <strong>de</strong> t<strong>em</strong>peramentos como o <strong>de</strong>le,<br />
po<strong>de</strong>mos imaginar alguns dos <strong>de</strong>talhes do quadro cujos<br />
contornos meu avô <strong>de</strong>lineara. Uma vez convencido da<br />
morte <strong>de</strong>la, Murlock manteve a luci<strong>de</strong>z necessária para<br />
se l<strong>em</strong>brar <strong>de</strong> que os mortos <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser preparados para o<br />
enterro. Cumprindo esse <strong>de</strong>ver sagrado, cometeu erros <strong>de</strong><br />
quando <strong>em</strong> quando, fez algumas coisas incorretamente e<br />
repetiu outras várias vezes até acertar. Sua incapacida<strong>de</strong><br />
aqui e ali <strong>de</strong> executar uma ação comum o <strong>de</strong>ixava atônito<br />
como alguém que, <strong>em</strong>briagado, não enten<strong>de</strong> a suspensão<br />
<strong>de</strong> leis da natureza conhecidas. Que não chorasse, surpreendia-o<br />
e também meio que o envergonhava: <strong>de</strong>certo<br />
era insensível não chorar pelos mortos. “Amanhã”, disse<br />
<strong>em</strong> voz alta, “terei feito o caixão e cavado a sepultura;<br />
então sentirei falta <strong>de</strong>la, quando não pu<strong>de</strong>r mais vê-la; mas<br />
agora – ela está morta, é claro, mas está tudo b<strong>em</strong> – <strong>de</strong>ve<br />
estar tudo b<strong>em</strong>, <strong>de</strong> algum modo. Nada é tão ruim quanto<br />
parece.”<br />
De frente para o cadáver, à medida que escurecia, ele<br />
lhe arrumou o cabelo e <strong>de</strong>u os retoques nais a seu vestuário<br />
singelo. Fez tudo mecanicamente, com uma atenção<br />
<strong>de</strong>spida <strong>de</strong> sentimentos. E, no entanto, uma sensação<br />
subjacente <strong>de</strong> certeza – <strong>de</strong> que tudo estava b<strong>em</strong>, <strong>de</strong> que ela<br />
voltaria para car com ele como antes e as coisas se esclareceriam<br />
– perpassava-lhe a mente. S<strong>em</strong> experiência prévia<br />
<strong>de</strong> dor, sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> senti-la não fora exercitada<br />
pelo uso. Seu coração era incapaz <strong>de</strong> abarcá-la por inteiro<br />
e sua imaginação, <strong>de</strong> imaginá-la. Ele ignorava a dureza do<br />
golpe que sofrera. Tal conhecimento viria <strong>de</strong>pois e nunca<br />
mais o <strong>de</strong>ixaria. A dor é uma artista cujos po<strong>de</strong>res são<br />
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