Diante desses questionamentos, sente pena de si mesma: “... como vê, reconheço que podia ser ainda mais digna de piedade do que sou”. Mas a decisão está tomada: “Mas não quero sabê-lo! Já lhe pedi, e volto a suplicar-lho, para não me escrever mais”. Completa a imagem a frase: Je croys que je ne vous souhaite 31 , reportando <strong>ao</strong> sofrimento, os momentos de amor e ira, o arrependimento e, finalmente, o perdão. Muito tempo vivi num abandono e numa idolatria que me horrorizam, e o remorso perseguem-me com uma crueldade insuportável. Sinto uma vergonha enorme dos crimes que me levou a cometer; já não tenho, pobre de mim!, a <strong>paixão</strong> que me impedia de conhecer-lhes a monstruosidade. Quando deixará o meu coração de ser dilacerado? Quando é que me livrarei deste cruel perturbação? Apesar de tudo, creio que não lhe desejo nenhum mal, e talvez me não importasse que fosse feliz. A última litografia que ilustra a quinta carta, anexo AF, representa essa mulher decidida e pura de coração. Na leitura de Matisse é o momento de desenhar um rosto mais cheio, expressando tranqüilidade. Essa Mariana de rosto bem delineado possui olhos mais confiantes e lábios que expressam firmeza pela decisão tomada. A frase Je prendai contre moi... 32 corrobora a confiança e o reconhecimento do erro cometido, mas que resultou na força de uma decisão: “prometi um estado mais tranqüilo, que espero atingir”. Reconheço que me preocupo ainda muito com as minha queixas e a sua infidelidade, mas lembre-se que a mim própria prometi um estado mais tranqüilo, que espero atingir, ou então tomarei uma resolução extrema, que virá a conhecer sem grande desgosto. De si nada mais quero. Sou uma doida, passo o tempo a dizer a mesma coisa. É preciso deixá-lo e não pensar mais em si. Creio mesmo que não voltarei a escrever-lhe. Que obrigação tenho eu de lhe dar conta de todos os meus sentimentos? De acordo com Iser (1999) o não-dito é uma forma conduzir o leitor para dentro do texto e imaginar o significado de algo que já foi dito, mas que foi sucedido por um lugar vazio, o qual dá margem para a inferência de uma leitura por detrás das palavras. Matisse, leitor das cartas, criou rostos e vinhetas que se identificaram com os aspectos de uma experiência vivida por uma mulher apaixonada, numa perfeita interação entre texto e leitor. A arte, segundo Iser (1999), se apresenta com graus de complexidade, dificultando a interpretação e representação do leitor. Este, por sua vez, sente-se impulsionado a 31 Tradução segundo Eugênio de Andrade: creio que não lhe desejo nenhum mal 32 Idem: a mim própria 86
preencher os vazios, agindo sobre eles e trazendo o seu repertório. A leitura das Cartas Portuguesas e das litografias de Henri Matisse constituiu-se nessa experiência, as palavras refletiram-se nas imagens e as imagens representaram as palavras num ato de interação. 87
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