22Centrais15 | Outubro | 2010, VUMAMA EMPRESAMPRESA, , VÁRIAS VGERAÇÕESZé do Barrete – a história de uma família de AlvorninOs últimos clientes saem porvolta das 23h00. É nessa alturaque César Santos e a mulherabandonam a cozinham e sejuntam ao irmão, José Luis, e àcunhada, que andaram a serviràs mesas. É assim que repartema tarefa: César procura darseguimento à cozinha tradicionalportuguesa que aprendeucom a mãe e José ocupa-se dosclientes.Ao fim da noite a pausa durapouco. Uma garrafinha de água,um licor e ala que se faz tardeporque é preciso ainda arrumaro restaurante e deixá-lo preparadopara o dia seguinte.Mas hoje o serão é para contarmemórias. Os dois irmãosestão lado a lado e não enganam- são mesmo parecidos.Falam da Alvorninha onde nasceram,mas da qual guardampouca memória porque vieramainda crianças para as <strong>Caldas</strong>.Alvorninha, ano de 1946. GracindaMaria Correia tem 16 anose nunca tinha cozinhado paratanta gente. É o primeiro casamentoque faz como cozinheira,tarefa que haveria de a arrancarao trabalho do campo. Duranteanos a fio, cozinha paracasamentos e baptizados, quenaquele tempo e naquele meiose realizavam sobretudo nascasas das pessoas, nas adegase nas garagens. Virá a casar játarde (sobretudo para os padrõesda época) com quase 30anos, com um rapaz da sua idade,Raul dos Santos, tal comoela, nascido em 1930 e naturalda mesma terra.Nos anos sessenta, em Alvorninhanão havia muitas maisprofissões e Raul é, como quasetoda a gente, agricultor. Mas é-lhe detectada uma artrose, doençanada compatível com o trabalhodo campo.O casal, já com três filhos (César,José Luís e Armando),muda-se para a cidade. E Gracindaaproveita para concretizarum sonho antigo – ter umrestaurante onde possa cozinharpara os clientes, até porquenunca largara essa activi-Raul e Gracinda com os filhos José Luís, Armando JorgeQuem os conhece diz que se dão como irmãos. É uma redundância porque César e José são, de facto,irmãos. Mas mais do que isso, são amigos e sócios. Tomam conta de uma das mais antigas casas derestauração caldense, o mesmo negócio com que os pais ganharam o sustento para os criar e que elesagora mantém, adaptando-o a outros tempos. Esta é a história do Zé do Barrete, o restaurante quecomeçou por ser uma taberna nos anos quarenta, quando José Faustino Leal, vindo de Vila Nova(Alvorninha) comprou a antiga carvoaria que havia na Travessa Cova da Onça. O estabelecimentohaveria de sofrer vários trespasses até chegar às mãos de Raul dos Santos e Gracinda Correia, em 27de Dezembro de 1966, que por sua vez o legariam aos filhos em 1985.e César Manueldade e chegara até a montaruma tasquinha na feira da RioMaior.Em 27 de Dezembro de 1966,por 40 contos (200 euros) Raul eGraciete tomam então de trespasseo Zé do Barrete, a já famosataberna e casa de pastoda Travessa Cova da Onça. Nãoperdem tempo e fazem obras.Ampliam espaços, constróemum forno e dão um cunho pessoalao projecto que abraçaram.A mulher trata da cozinha e omarido serve os clientes. Mas éela a alma do negócio. Com 43anos completa a 4ª classe (numtempo em que não havia NovasOportunidades e era mesmonecessário estudar-se para sepassar no exame) e tira a cartade condução. Raul (que faleceuem 2003) apenas sabia assinar oseu nome, mas os clientes recordam-nocomo a face visíveldo Zé Barrete, um homem cheiode boa vontade e simpatia, umautêntico relações públicas.A par deste negócio, o casalaproveita tudo o que pode paraarredondar os rendimentos. Alugaquartos aos aquistas que demandamo Hospital Termal, Gracietelava a roupa aos militaresdo RI 5 (hoje ESE) e Raul arranjaum ocupação diária curiosa – vaiO restaurante sofreu sucessivas modificações e hoje nada resta da antiga casa de pastoJosé Luís, Ana Paula, Gracinda Correia, César e Rymma Tupchiynuma motorizada ao quartelbuscar as refeições ali cozinhadaspara os reclusos da cadeiadas <strong>Caldas</strong>.No dia 16 de Março de 1974,com o país à beira de uma revoluçãoque abortou, o quartel das<strong>Caldas</strong> está cercado e não o deixampassar. Raul, que nada percebiade política, insistia em furaro cerco para ir buscar a comida.Dizia que os presos tinhamde comer e teimava em dirigirseao quartel. Impedido de o fazer,voltou para trás, foi falar como director da cadeia e arranjou asolução. Naquele dia os reclusoscomeram ovos estrelados comarroz e salsichas, tudo cozinhadono Zé do Barrete.“Ainda me lembro de veruns panelões enormes comessa comida nesse dia. Eutinha 11 anos…”, conta JoséLuís Santos.Os três irmãos crescem entreo bulício do restaurante e asbrincadeiras na Travessa Covada Onça. E seguem diferentescaminhos. Armando, o maisnovo, partiu para os EstadosUnidos, onde vive e tem dois filhos.César quer seguir a carreiramilitar e vai para a tropa paraLisboa. José Luís dá por si a trabalharcomo mecânico-electricistana F.A. Caiado (a fábricade tomate e conservas, entretantofechada, que tinha instalaçõesna Estrada da Tornada eno centro das <strong>Caldas</strong>).Em 1980 o casal, que até entãopagava renda pelo restaurante,compra o edifício por 850contos (4.240 euros). A vida nãocorre mal, apesar do intenso trabalhodiário.Há aqui um momento em queparece que ninguém vai pegarno negócio da família, mas vaiser José Luis – que na verdadesempre continuou ligado ao restaurantea ajudar os pais – quetoma uma decisão importantelogo a seguir ao seu casamentocom Ana Paula Marques, em1984. Na fábrica ganhava poucoe resolve que seria no Zé doBarrete que iria buscar o sustentopara a família.O irmão César acompanha-ona aventura. Diz adeus à fardade furriel em Lisboa e regressaàs <strong>Caldas</strong>, iniciando uma sociedadeque, diz quem os conhece,parece abençoada, tal é o graude sintonia entre os dois irmãos.Progressivamente os paisafastam-se e cedem-lhes o lugar,situação que é formalizadaem 1985 com a atribuição da gerênciaaos dois filhos (o maisnovo, Armando, emigrara paraos Estados Unidos onde aindahoje vive). A casa sofre remodelaçõeslogo nesse ano. E tambémem 1989 e em 2005. Da antiga casade pasto já hoje nada resta e oestabelecimento é actualmenteum restaurante vulgar, que guarda,contudo, um nome sonante ememórias que se cruzam com ahistória da cidade.Os dois irmãos são sócio-gerentesda firma Restaurante Zédo Barrete, Lda., formalmentecriada em 1998 e que tem hojeum capital social de 5000 euros.A empresa, que tem um volumede negócios anual que ronda os200 mil euros, é composta pelosdois sócios-gerentes irmãos etrês empregados: as respectivasmulheres e mais uma funcionária.A sociedade, porém, pagauma renda à Gracinda MariaCorreia – Sociedade Unipessoal,esta sim, a verdadeira proprietáriado imóvel.Carlos Ciprianocc@gazetacaldas.com
Centrais2315 | Outubro | 2010ha que veio viver para a Travessa Cova da OnçaJosé Faustino Leal - o fundadorJosé Faustino Leal comprou nos anosquarenta a carvoaria que existia na TravessaCova da Onça, uma artéria discretado centro da cidade que duranteanos concentrou tabernas e casas depasto, local também de muita circulaçãode burros e carroças de quem demandavaa Praça da Fruta e guardavaas “viaturas” numa cocheira que aliexistia.Deste homem, natural de Vila Nova,na freguesia de Alvorninha, sabe-seque durante uns tempos colocava umbarrete na cabeça, divertindo clientese amigos. Fazia-o na brincadeira, masa alcunha pegou e deu nome ao estabelecimento,atravessando todo o séculoXX e os sucessivos proprietáriosda então taberna com casa de pasto ehoje restaurante.Não foi possível reconstituir os váriosdonos do Zé do Barrete. Maria AméliaRamos Paulo e César Tempero já otomaram de trespasse a outro dono quenão o fundador da casa. E quando decidiramlargar o negócio, deixaram-noa uma senhora, de nome Emília, de Alcobaça,que em 1966 viria a trespassáloaos pais dos irmãos Santos.Parece que desde cedo o nome Zédo Barrete foi aceite como uma marcaque os seus quatro sucessivos proprietáriosquiseram manter. É um nomesaloio, ligado ao mundo rural, com raízesnum tempo em que os barreteseram usados pelos homens do campo,mas também associado a boa mesa, auma gastronomia caseira e a um serviçopersonalizado.No seu livro “Continuação”, João BonifácioSerra, descreve com grandeprecisão as suas memórias dos últimosBarretes nos anos cinquenta:“Eram pretos, compridos e tinham uma borla na ponta. Embora já não fossemusados pela maioria dos camponeses, constituíam um símbolo respeitado pormuitos, em especial os mais velhos. Punham-no de Verão e de Inverno e raramenteo tiravam (para assistir à missa, passar junto a um cemitério ou acompanharum funeral, cumprimentar pessoas de respeito, entrar em casa alheia).Quase sempre quem os usava tinha direito ao epíteto de Ti, que denunciava aidade e o respeito que inspirava. De dentro podiam sair várias pequenas surpresas.Do do Ti João Franco ou do Ti João Seco saíam duas carecas completamentelisas e completamente alvas, em contraste violento com a cara tisnada pelo sole enrugada pelo tempo. Mas também podiam sair um maço de mortalhas e umpacotinho de tabaco, uma moeda e, mais raramente, uma nota, uma carta recebidade um parente longínquo ou de um organismo público, trazida para pedir aquem soubesse ler que decifrasse o que lá vinha escrito”A família Tempero no Zé do BarreteAcabou-se o pico do Verão e a fraca procurano InvernoQual o segredo do êxito?O restaurante esteve durante alguns“A tradição e o nome”, responde anos aconselhado no Guide du RoutardJosé Luis. “A cozinha tradicional, quee José Luís conta que, graças a isso,segue a linha da minha mãe”, respondeCésar Santos. A localização bem clientes franceses. Ao ponto de ter de-era raro o dia em que não apareciamno centro da cidade também conta, corado a ementa da casa em francês.apesar de alguns se queixarem da difi-“Agora estamos pior no Verão eculdade em estacionar. E também osmelhor no Inverno. Antes trabalha-clientes que frequentam a casa há maisva-se três meses bons e procura-de 30 anos.va-se aguentar isto durante o res-As especialidades da casa passamto do ano. Agora não há picos. Épelos peixes frescos grelhados, o cozimaisou menos igual o ano inteidoà portuguesa das quartas-feiras ero”. É isso que constata José Luís.os filetes de pescada fresca às quintas.A clientela não falta e a recessão cinda Correia, hoje com 80 anos e do-Raul dos Santos morreu em 2003. Gra-não parece afectar o negócio.ente, ainda há poucas semanas tentavadescascar umas batatas e ajudar osÉ claro que já houve tempos melhores,mas isso não tem a ver com a crise filhos, mas passa grande parte do tempoeconómica mundial. Antes com a cidadee com o que ela já foi. Nos verões de gal e dois nos Estados Unidos, com ida-num lar. Tem quatro netos em Portu-há 15 anos os irmãos lembram-se de a des entre os três meses e os 22 anos.casa encher por completo ao meio-dia, Alguns já trabalham. Mas mais do quedepois às 13h00 e depois às 14h00. Eram um, particularmente sensibilizado comos aquistas que vinham mais cedo, os a história da família, já disse que “oemigrantes, os turistas, os caldenses.Zé do Barrete não pode morrer”.Grande parte da clientela vinha do Alentejo,de Elvas, Évora, Alandroal, Mou-C.C.ra, e vinham aos banhos às <strong>Caldas</strong>. Issoagora acabou.CRONOLOGIA1930 - Nascem Raul dos Santos e Gracinda Ferreira, futuros proprietáriosdo Zé do Barrete1966 - O casal toma de trespasse a então taberna e casa de pasto1980 - Raul e Gracinda compram o edifício por 850 contos (4240 euros)1985 - Os irmãos César e José Luís entram formalmente na gerência dacasa, sucedendo aos pais1989 - Remodelação interior do estabelecimento1998 - Criação da firma Zé do Barrete, Lda. pelos irmãos César e José Luís2005 - Última remodelação do estabelecimentoMaria Amélia Ramos Paulo (1928-2004) e César Mota Tempero (1928-2005) numa imagem do início da década de cinquenta. O casal esteveà frente do Zé do Barrete entre 1957 e 1960. César era empregado do café Zaira e a esposa assegurava o funcionamento, durante o dia, daentão taberna e casa de pasto. A filha, Ida Amélia, que hoje trabalha no Registo Civil das <strong>Caldas</strong>, nasceu em 1957 nessa mesma casa. Nas fotostem três meses e está à porta do estabelecimento ao colo do irmão, César Tempero, que então tinha seis anos e viria a ser muitos anos depoispresidente da Junta de Freguesia dos Vidais. A foto da direita, também com a bebé Ida, é uma das poucas imagens antigas onde se pode veruma parte do interior da casa do Zé do Barrete.