18Centrais29 | Outubro | 2010, VUMAMA EMPRESAMPRESA, , VÁRIAS VGERAÇÕESSai farinha gourmet da moagem José Félix Quitério,Joaquim Rebelo (1883-1960) foi o precursorde uma actividade que já leva 70 anosJosé Félix Quitério (1924-2009), genro de Joaquim Rebelo, pegounos destinos da fábrica de moagem em 1976Filipe Quitério e a avó, Maria Luísa, são hoje a face visível deum negócio de várias geraçõesA necessidade aguça o engenho.O ditado é antigo e era levadoà prática por Joaquim Rebelo(1883-1960), um carpinteiro dasGaeiras que, numa tentativa demelhorar a vida nos anos durosdo início do séc. XX, construiu ummoinho de pedra, com a ajuda daesposa, e começou a moer trigopara fazer farinha.A obra ficou pronta em 1920,altura em que houve um terramotoem Benavente e JoaquimRebelo foi para lá trabalhar decarpinteiro, deixando a esposa,Luísa Rebelo (1889-1968) a tomarconta do moinho e da sua produção.“A minha mãe dormia lá coma minha irmã e trabalhava nomoinho toda a noite, fazendofarinha tal e qual como o meupai lhe ensinara”, recorda a filha,Maria Luísa Rebelo Quitério,hoje com 84 anos.Regressado de Benavente ocarpinteiro-moleiro Joaquim Rebelocontinuou a produzir farinhae o negócio deve ter corrido bemporque, 20 anos depois, em 1940,constrói uma moagem no centrodas Gaeiras (deixando o moinhoarrendado ao seu fiel funcionárioManuel, a quem dera trabalhoquando este tinha 14 anos).O casal Joaquim e Luísa Rebelotem, entretanto duas filhas: Alice,nascida em 1921 (faleceu em2004), e Maria Luísa Rebelo, nascidaem 1926. Esta recorda-se quea nova fábrica fazia sensação naaldeia das Gaeiras nos anos 40. Amoagem utilizava aquilo que paraa época eram novas tecnologias -mós francesas (uma novidade àépoca), seguindo-se a introduçãode pneumáticos e cilindros, permitindoo aumento da produçãoda farinha de trigo.Alice e Maria Luísa casam, respectivamente,com Gil Palma eJosé Quitério (1924-2009), que acabariampor vir juntar-se à actividadeda família.A filha mais nova de JoaquimRebelo lembra-se que se casouA empresa em nome individual José Félix Quitério – Farinha das Gaeiras foi criada em 1976, mas a suahistória é bastante mais antiga e traduz-se numa paixão que une já três gerações.No início do século XX o carpinteiro Joaquim Rebelo (1883-1960) constrói um moinho nas Gaeiras ecomeça a produzir farinha. O negócio prospera e em 1940 constrói uma fábrica de moagem no centroda aldeia, onde também começam a trabalhar os seus dois genros.Divergências após a morte do patriarca levaram a fábrica quase à falência, até que é adquirida em1976 por um dos genros, José Félix Quitério, que volta a dar-lhe um novo fôlego. Hoje é o neto maisnovo que está à sua frente e que pretende torná-la uma fábrica de futuro, mas assente nos valores dapalavra e do conhecimento, cimentados em muitos anos de relações comerciais transmitidos peloavô.A farinha das Gaeiras “feita 100% de trigo” tornou-se uma marca de qualidade e é comercializadapor toda a região.com 18 anos (1944) e que o maridoteve que ir assentar praça de seguida,levando-a para o Lumiar,em Lisboa, durante um ano. “Omeu pai ia lá todos os domin-gos ver-me e perguntar do queprecisava”, conta, acrescentandoque logo que a tropa foi terminadaregressaram às Gaeiras.Como José Quitério não tinha emprego,o sogro empregou-o na fábrica,junto com o cunhado.“Trabalhavam lá os dois,mas o meu pai era a travemestra que orientava aquilotudo”, conta Maria Luísa Quitério,que desde pequena ajudavao pai com as contas.Além do patriarca e dos genros,trabalhavam na moagemmais quatro pessoas.Em 1960 Joaquim Rebelo morree os dois genros herdam a fábrica,cuja administração passam aassumir, ficando Gil Palma responsávelpela contabilidade. A relaçãoentre dois é difícil, acentuando-secom o tempo, chegandoao ponto de praticamente não sefalarem.Por esse motivo, José Quitério começaa afastar-se da moagem passandoa dedicar-se à agricultura.CRIAÇÃO DE LOTES ESPECIAISDÃO FAMA À FARINHADevido à falta de uma verdadeiragestão, e sem rumo estratégico,em 1976 a fábrica encontra-sepraticamente parada e comdívidas à EPAC (Empresa Públicade Abastecimento de Cereais).Maria Luísa descobre pelas folhasde caixa que o montante em dívidateria que ser pago nos próximosoito dias ou todo o patrimónioiria “à praça”.O casal opta por lutar pela posseda fábrica, dado que não conseguiuacordo com os familiares.A operação de venda em hastapública decorre em 26 de Novembrode 1976. O preço base é de 10escudos (cinco cêntimos) e viriaatingir 2500 contos (25 mil euros).Na noite em que se decidia ofuturo da empresa, Maria Luísapermanece dentro do carro, àporta do escritório de um advogado,até às cinco horas da manhã àespera de saber o desfecho.“Chega o meu marido e diza fábrica é nossa! Começo dechorar e a dizer que ele nosdesgraçou porque não temosdinheiro”, recorda a octagenária,acrescentando que José Quitériologo a sossegou, dizendo queantes de ir para a licitação foi aobanco Totta & Açores (actual Santander)para pedir um empréstimo,que foi desde logo concedido.José Quitério entrega metadedos 2500 contos ao cunhado e fica,assim, senhor da empresa, apressando-se,também a pagar a dívidaà EPAC.“Ninguém tinha um tostão,não sei como sobrevivemos,foi duro”, recorda Luísa Quitério,que passou a tomar conta doescritório. Mas as dificuldades foram-seatenuando e “aquilo afi-nal correu bem”, conta, recordandoque em dois apenas pagarama dívida ao banco.Nos anos setenta, após a extinçãoda EPAC (que asseguravaa distribuição de trigo pelas moagensdo país) e com a liberalizaçãodo mercado dos cereais, houvemuitas empresas que faliram.“Antes éramos 70 e agora devemosser umas 20 ou 30 mo-agens a funcionar”, revela,dando conta que a sua sempresobreviveu porque é pequena etem um carácter artesanal quehoje é uma mais-valia.“Há ali um sistema muitomanual que faz a farinha tal equal como nós queremos,mais ou menos elástica, consoantese destina a pastelariasou à transformação ali-mentar”, explica.Pouco tempo depois de seremproprietários da fábrica, contrataramum especialista que foi àsGaeiras alterar o processo produtivo,aumentado a produção parao triplo.“Começámos a moer cadavez mais e a farinha começoua ter muita fama”, o que implicavaque todos os dias, um dosproprietários tivesse que ficar denoite a cuidar da fábrica.José Quitério criou uns lotes especiaisde farinha, que começarama granjear fama na região,vendendo não só para a as <strong>Caldas</strong>e Óbidos, como para os concelhosde Santarém, Peniche eAlcobaça.Com a fábrica a produzir em pleno,o casal Quitério pode entãopassear e Maria Luísa recorda hojeas viagens que então fizeram aoBrasil e Japão porque, “até até entãotinha sido só trabalhar”.Ainda hoje Maria Luísa, apesardos seu 84 anos, continua a fazera contabilidade da fábrica e a ajudaro novo gestor da moagem – oseu neto, Filipe Quitério.O que acontecera entretanto?José Quitério e Maria Luísa tiveramsó um filho – Gil Quitério, nascidoem 1945 - que acabaria porseguir um rumo diferente sendohoje professor universitário no InstitutoSuperior de Engenharia deLisboa.Aparentemente a família demoleiros estaria interrompidaaqui, mas o filho de Gil, Filipe Quitério(28 anos), acabaria por seguiras pisadas dos avós e dosbisavós.Fátima Ferreirafferreira@gazetacaldas.comJosé Félix Quitério numa mostra das actividadeseconómicas das Gaeiras em 2006
Centrais1929 | Outubro | 2010nas GaeirasUma empresa flexível que aprendeu a viver num mercado globalFilipe Quitério nasceu em 1982,quase um século depois do seubisavô e está agora a comandaros destinos da moagem José Quitério,dando continuidade à paixãodos avós e mantendo umaactividade que conta com 70 anosde existência.Criado em Lisboa com os pais(o professor universitário Gil Quitérioe Maria Manuela Dias, actualmentepresidente da Juntade Freguesia da Portela), ondeestudou Gestão no ISEG, FilipeQuitério sempre andou pela fábricadas Gaeiras, nas visitas quefazia aos avós, mas nunca tinhacolocado a hipótese de ali trabalhar.Mas quando já andava no segundoano da faculdade, o avôQuitério procurou-o e incentivouoa continuar-lhe os passos. “FuiFuisendo motivado pela manei-ra dele, pelos seus valores”,conta o jovem, que começou aaprender os “segredos” da moagemdo trigo há seis anos.Começou nas tarefas do quotidiano,em redor dos trabalhadores,a ver como faziam as farinhas,como funcionam as máquinas,e depois é que foi aprendera fazer as compras do cereal.“Em termos de trigo, porexemplo, não assino contra-tos com pessoas abaixo de60 anos, que também me en-sinam muito”, refere.Filipe salienta que uma dascaracterísticas desta fábrica é asua maleabilidade e capacidadede adaptar-se aos tempos.“O O que se passa agora éque temos força a mais paraa necessidade do mercado”,explica, precisando que o avôsempre trabalhou num sistemade produção que, embora sendopequeno, “é muito afinadi-nho”. Actualmente estão comuma produção média de 15,5 toneladasde farinha por dia, em10 horas de funcionamento.Os clientes e a fidelidade àmarca nunca faltaram, mas oscostumes foram-se alterando.Esta é uma farinha tradicional eos padeiros já conseguem compraruma farinha mais barata edepois retocá-la com conservantes.“A A nossa é farinha 100%trigo e tem quatro espéciesdiferentes”, refere Filipe Quitério,acrescentando que o segredoestá em comprar bom trigo.Usam cereal do Alentejo, de Espanha,França e Alemanha, quemisturam entre eles. O cereal deorigem alemã, por exemplo, é famosopor ser muito caro e melhoradordos outros mais fracos.“A globalização afectou to-dos e os grandes grupos do-minam m o mercado”, explica, realçandoque as empresas mais pequenas,como é o caso da sua, têmque ter uma oferta diferenciada ereconhecida pelas pessoas.“EU AINDA COMPRO TRIGOCOM UM APERTO DE MÃO”A passagem de testemunho foirelativamente fácil porque a avóLuísa continuava a ser um pontode referência em termos de fornecedorese clientes. “Todosconhecem a voz dela ao tele-fone. É uma marca”, conta FilipeQuitério, acrescentando queeste é um sector onde ainda édado valor à palavra e ao conhe-A fábrica produz diariamente 15,5 toneladas de farinhade trigoA velha fábrica de 1940 tem acompanhado o progresso tecnológico cominvestimentos sucessivos em maquinariacimento cimentado em muitosanos de relações comerciais. “EuEuainda compro trigo com umaperto de mão”, comenta o jovemempresário.Filipe Quitério costuma até dizeraos seus clientes que o seupapel é relativamente fácil porqueo avô deixou tão bom nome,que é bastante bem recebido nomeio. Na zona não há nenhumapanificação que não conheça amoagem das Gaeiras.É o neto que define o avô comosendo “um homem bom”, destacandoo seu envolvimento nosprojectos das Gaeiras, ondeapoiou a construção de algunsequipamentos e foi dirigente associativo.Em sintonia com esseespírito solidários, a viúva, MariaLuísa, doou à Junta de Freguesiao velho moinho construídopelo seu pai em 1920.O actual gerente destaca quea empresa não possui créditospendentes. “O dinheiro é nos-so e está tudo pago”, diz, escusando-sea divulgar o volumede negócios da empresa.Uma das preocupações para ofuturo é a falta de trigo. “Já di-zia o meu avô que é como ovinho: o trigo português émuito mais saboroso e esteano, por exemplo, há poucocereal”, explica o gestor da moagemdas Gaeiras que armazena600 toneladas de trigo porano, proveniente de terras lusas,a que junta o espanhol, alemãoe francês.Contudo, a escassez de trigoque se tem registado nos paísesconsiderados celeiro da Europanão lhe tira o sono, pois há semprealternativa, nomeadamentecom o fornecimento oriundo daAmérica.“Isto acontece porque nãohá gente nova no trigo”, refere,reconhecendo que esta produçãode trigo não é lucrativa, oque leva a que haja menos cerealde origem nacional e, consequentemente,com menos qualidade.O futuro deverá delinearseao nível da panificação, com oajustamento dos químicos e outrasformas artificiais de substituiçãoda farinha.“Isto será a minha vida”,conta agora Filipe Quitério, queestá a gerir a moagem desde queo avô faleceu, há um ano e meio.Conta com a colaboração dosempregados, “que estão cá háuma vida”, e da avó, que continuaa fazer a contabilidade, agoraem sua casa. Esta, em jeito debrincadeira, remata: “passei avida inteira a contar dinhei-ro, mas nunca era meu”, lembrandoque tinha apenas 10 anosquando o pai lhe entregou os dinheirose uma caixa que elaaprendeu a gerir com o guardalivrosque apoiava a fábrica. “ Iaaos bancos das <strong>Caldas</strong> e to-dos me conheciam: lá vem amenina das Gaeiras, diziam”.Há cerca de quatro mesescompraram um camião cisterna,para fazer as entregas aos clientes.“Vamos atrás do futuro”,conta o jovem gestor, que quercontinuar com a informatizaçãoda fábrica.Por agora, Filipe mora em Sacavéme desloca-se às Gaeirastodos os dias. Faz parte dos seusplanos vir morar nas Gaeiras porquedirigir uma empresa implicaestar mais presente.Entretanto, gosta do tempoque despende no percurso:“para cá pensa-se no que sevai fazer e no regresso pen-sa-se no que se fez”.Fátima Ferreirafferreira@gazetacaldas.comJoão Silva esteve 40 anos ao serviçoda fábrica“Sabia se a fábrica estava a trabalhar bem ou malsó pelo som que emitia”, recorda João Silva que “viveu”na fábrica entre 1965 e 2005.Natural das Gaeiras, onde nasceu em 1940, João Silva começoua trabalhar na moagem com 25 anos. Vivia-se o ano de 1965e tinha acabado de cumprir o serviço militar em Angola. Deregresso à terra natal começou a trabalhar à experiência por ummês e depois, “como era uma pessoa pacata, que respeita-va a casa, os patrões entenderam que eu era a pessoaindicada para lá trabalhar”. E foi o que fez toda a vida, atéque se reformou aos 65 anos e saiu, já lá vão quatro anos.João Silva foi trabalhar para a fábrica como ajudante e dasfunções faziam parte o carregamento e descarga do trigo, ensacara farinha e carregá-la para os clientes. Depois começou aaprender como se fazia a farinha com José Quitério, que era omoleiro, e passou a tomar conta da fábrica na sua ausência,como encarregado.“Sabia se a fábrica estava a trabalhar bem ou mal sópelo som que emitia”, diz. Foi ajudante de moleiro, mas faziao trabalho tão bem como se fosse moleiro e dá nota pública dosseus conhecimentos: via a água que o trigo tinha que levar,consoante o cereal era mais rijo ou mole, para que este ficassebem peneirado.A boa farinha resulta de um bom trigo mas, segundo esteantigo empregado da fabrica, também deve ser bem peneirada,de modo a dar interesse ao patrão e ao freguês. O braço direitode José Quitério na laboração da fábrica conta que nunca precisaramde um viajante para vender farinha pois são os própriosclientes que os procuram.“A nossa farinha era e é falada por todo o lado. É feitaao natural, com o que o trigo dá”, diz, pondo em contrapontoa produzida pelas grandes fábricas onde é colocado fermento.O especialista explica ainda que a farinha para ser boa “nãoprecisa ser muito branca, mas um bocadinho trigueira.Faz bom pão e não deixa que o pão enrije tão depressa”,afiança.Ainda hoje a esposa cose pão caseiro com a farinha JoséQuitério. “Assim sabemos que estamos a comer pão natu-ral, enquanto que no padeiro a farinha já tem aditivos”,explica.CRONOLOGIAF.F.1920 – Joaquim Rebelo constrói um moinho nas Gaeiras e começaa moer trigo e a fazer farinha1924 – Nasce José Félix Quitério, futuro genro de Joaquim Rebeloe futuro dono da fábrica de moagem de farinha denominadaJosé Félix Quitério1940 - Joaquim Rebelo constrói a fábrica de farinha nas Gaeiras1960- Morre Joaquim Rebelo, ficando os dois genros (José FélixQuitério e Gil Palma) a gerir a moagem1976 – José Quitério e Maria Luísa compram a fábrica salvando-ada falência2004 – Filipe Quitério começa a trabalhar na fábrica com o avô2009 – Morre José Félix Quitério e o neto, Filipe, assume agestão da fábrica