18Centrais3 | Dezembro | 2010, VUMAMA EMPRESAMPRESA, , VÁRIAS VGERAÇÕESGilberto Santos fundou a Ourivesaria Beto e legou aGilberto Santos e os filhos nas <strong>Caldas</strong>quando regressaram de AngolaGilberto filho, Gilberto pai e Paulo Santos. O mais velho está emInglaterra a trabalhar no mesmo ramoO fundador da Ourivesaria Beto ao lado dos seussucessores: o filho Paulo e a nora, Fátima SantosGilberto Santos, mais conhecidopor Beto, nasceu em 1939 noBairro da Ponte, nas <strong>Caldas</strong> daRainha, no seio de uma famíliahumilde. Estudou até aos 10 anos,cumprindo a antiga quarta classena escola da Praça do Peixeantiga. Foi na escola que descobriuque tinha capacidades de artesão.Com apenas sete anos, andavana escola do Campo, tevecontacto com a olaria e impressionouo professor com o resultadode uma pequena peça. Mas ofuturo iria levá-lo para outro ofício.Quando saiu da escola, aindatrabalhou como polidor de móveis,na oficina do Ramalho, na Praçada Fruta - onde mais tarde se instalaramos Móveis Ferreira - e tambémtrabalhou nos mármores.Mas o gosto pelos relógios jáestava a nascer e começou a desenvolver-sequando os pais semudaram das <strong>Caldas</strong> para a SerraD’el Rei. Começou a arranjar relógiospara os vizinhos, numa tabernaem Ferrel. “Levava as mi-nhas ferramentas e tinha queesperar que os homens aca-bassem de jogar às cartaspara ter a mesa livre para fa-zer de bancada”, conta Beto.Os consertos já lhe rendiam unstrocados, mas rendimentos muitopequenos, pelo que a AugustoSantos não agradava muito que ofilho seguisse aquele ofício. Foi porisso à sua revelia que, quando aA história da Ourivesaria Beto é mais do que a história de uma empresa que passou de uma geraçãopara outra. É a história de como a paixão pelos relógios moldou a vida de um homem, Gilberto Santos(Beto), desde os 12 anos de idade, e que contagiou os filhos. Foi em 1977 que Gilberto Santos fundoua Relojaria Beto, então com 38 anos, mas a história começa mais de 20 anos antes, quando, aindacriança, começou a arranjar relógios numa taberna em Ferrel. Hoje em dia a Ourivesaria Beto é geridapelos dois filhos, Gilberto e Paulo Santos, virando-se para um ramo onde há uma grande falta deespecialistas: os relógios antigos.família regressou às <strong>Caldas</strong>, Betose dirigiu à oficina de conserto derelógios Agostinho, junto aos Capristanos,para pedir emprego.A resposta foi negativa, mas ainiciativa não foi em vão. “Disse-me que a loja era pequena, nãodava para ter empregados,mas garantiu que quandoGilberto Santos na Ourivesaria Sebastião, onde trabalhou entre1962 e 1965soubesse de alguém que pre-cisasse, me indicava”, conta.Augusto dos Santos era colchoeirona empresa de João Ramos,onde fazia colchões de palha - naaltura muito requisitados pelosmédicos para quem sofria da coluna- e foi para lá que Agostinhotelefonou, cerca de seis meses depois,com uma proposta de trabalhopara Gilberto. “Ele até se zan-gou, não sabia que eu tinhaido pedir trabalho”, relembraGilberto Santos.A oferta era para a RelojoariaAlcino, que se situava na Rua LeãoAzedo, hoje Rua Montepio RainhaD. Leonor, naquele que, aos 17anos, seria para Beto o primeiropasso a sério no mundo dos relógios.Estávamos em 1956.“Ainda me lembro do pri-meiro dia - ele entregou-me umrelógio pequenino todo des-montado e o meu trabalho eramontá-lo… e consegui”, recorda.O primeiro salário foi de 60escudos (30 cêntimos de euro).Beto lembra Alcino Pereira deBarros, aquele que considera o seugrande mestre, com enorme estima.“Era uma pessoa extraordinária,com uma grande sen-sibilidade, escrevia e recitavapoesia, era uma pessoa muitoquerida nas <strong>Caldas</strong> e até chegoua ser presidente dos Pim-pões, foi ele que me ensinoutudo”.Esteve no Alcino até 1962. Masobteve da Ourivesaria Sebastiãouma oferta de emprego em queganhava mais 100 escudos (50 cêntimos)por mês, o que na alturaera muito dinheiro. Gilberto aceitoue foi trabalhar com Sebastiãodo Coito Caramelo na Rua HenriqueSales.Em 1964 casou com Maria Antonieta,mãe dos seus dois filhos,tendo Sebastião como padrinhode casamento. Mas a relação patrãofuncionário não era das melhorese Beto resolveu voltar paraa Relojoaria Alcino, um ano depois.A Relojoaria Alcino, na Rua Leão Azedo, onde Gilberto aprendeu oofícioLUANDA FOI TERRA DEOPORTUNIDADESFoi no Alcino que conheceu Máriode Campos - que ainda hoje éproprietário de três ourivesariasem Leiria -, um agente dos relógiosTissot e dono de várias ourivesarias,uma delas em Luanda, paraonde convenceu Beto a ir trabalhar.“Eu não tinha vontade de ir,nem precisava em termos financeiros.Disse ao meu pa-trão que se me desse mais 200escudos (1 euro) ficava, mas osenhor Alcino não me quis cor-tar a sorte e disse-me paraaproveitar porque era novo eera uma boa oportunidade”,conta Gilberto Santos, que antesjá tinha recusado ir trabalhar paraa Suíça.Foi então para Luanda, em Junhode 1970. Sozinho, de avião, deixandopara trás a esposa e os doisfilhos, Gilberto, de seis anos, e Paulo,de dois anos, que só seguiriamviagem seis meses mais tarde.Em Luanda conheceu vários empregos,até porque as solicitaçõeseram muitas. Começou na OurivesariaCampos, mas depressa angariououtros clientes, arranjandoem casa relógios para várias ourivesarias.Uma delas, a OurivesariaBrasília, estava para fechar e odono referenciou-o para as oficinasda Omega e da Tissot. Era umagrande oportunidade para conheceralguma maquinaria de desenvolvimentode relojoaria suíça, quesó lá podia encontrar.Nas oficinas, geridas por um italiano,os processos de trabalhoeram bastante restritos. “Só sepodia arranjar dois relógiospor dia, se arranjássemos trêsera porque estavam mal arran-jados”, recorda. Mas o trabalhode Beto mereceu reconhecimentoe, apesar de só ter ficado cerca deseis meses nessa firma, foi suficientepara ser promovido.Mas em 1973, três anos depoisde ter partido, regressa à entãoMetrópole (Portugal). Gaspar, um
os filhos uma profissão de que eles se orgulhamdos moços de recados da Omega,natural de Moçambique e comquem Gilberto mantinha uma relaçãode amizade, avisou-o: “a re-volução vai rebentar em 73 ou74, vai-te embora”.E sem avisar mais ninguém paraalém do amigo, regressou com afamília para as <strong>Caldas</strong>, em 1973, abordo do navio Pátria.RELOJOARIA BETO NASCEUPOR IMPOSIÇÃOQuando regressou às <strong>Caldas</strong>, aRelojoaria Alcino tinha as vagaspreenchidas, mas havia outro localpara regressar. Um dos seusantigos patrões, Sebastião Caramelo,tinha falecido em 1971. Aviúva, Maria da Luz, ficara com aloja, mas não tinha quem fizesseo trabalho de oficina, pelo que convidouBeto a voltar, para salvaguardaro concerto dos relógios.Ao fim de quatro anos, em 1977,Maria da Luz ofereceu-lhe a oficina.Homem humilde, Beto nuncaencarou a sua profissão para láda bancada e o investimento numestabelecimento próprio não faziaparte dos seus planos. Mas aforma como a patroa colocou aquestão, ou aceitava ficar com aoficina, ou deixava de poder trabalharali, foi o impulso necessáriopara que nascesse a RelojoariaBeto.A oficina ficava na Rua MiguelBombarda, nas traseiras da ourivesariaSebastião e nem tinha porta,pelo que teve de se abrir umaatravés de uma janela.O relojoeiro era proprietário eúnico funcionário da casa… até osseus filhos começarem a trabalhar.“O meu pai sempre teve a suabancada em casa e no nossodia-a-dia sempre lidámos comrelógios, estiveram sempre lána nossa infância e começámosdesde muito cedo a me-xer, mesmo por iniciativa domeu pai”, conta Paulo Santos.Foi aos 16 anos (Gilberto em 1980,Paulo em 1984) que os dois iniciarama actividade profissionalmente.Por opção, ambos passaram aestudar à noite - Gilberto na EscolaRaul Proença, Paulo na Rafael BordaloPinheiro - para poderem abraçaro ofício do pai na Relojoaria Beto.Gilberto, o filho, lembra-se de irmiúdo para a loja com o pai. “Nãobrinquei muito porque ia como meu pai para a loja, mas iacom gosto porque aquilo fas-cinava-me, queria ser comoele”.Paulo comungava também davontade de seguir as pisadas dopai. “Reprovei de propósito umano porque o meu pai disse quese reprovasse ia estudar denoite e o que eu queria era irtrabalhar”, conta Paulo Santos.Gilberto seguiu a especialidadedo pai - os relógios mecânicos tradicionais.“Estive dois anos pra-ticamente só a ver como o meupai fazia porque é um proces-so muito demorado, estamossempre a aprender e ainda hojecontinuo”, sublinha.Paulo também começou com osrelógios de corda, mas nessa alturacomeçaram a surgir os relógiosde pilha e foi para esses que direccionoua aprendizagem em formade autodidacta. “Foi por tentati-va erro, explorando relógiosestragados, fui perguntando aquem percebia de electrónicanoutras áreas, porque cursosnão havia…”, recorda.PASSAGEM DE TESTEMUNHOO negócio sofre, no entanto,uma grande mudança. Como a lojavivia essencialmente do conserto,a venda era muito pouco exploradae foi-se tornando cada vez maisdifícil tirar dali rendimento paratrês pessoas.Em 1990, Beto e Maria Antonietadivorciaram-se e relojoeiro aposentou-se,passando a loja aos filhos.Mas perante a impossibilidade detirar rendimento para duas famílias,Paulo deixa o irmão mais velhoficar com Relojoaria Beto e procuraoutro emprego, até porque tinhacasado nesse mesmo ano.Apesar de mudar de ramo, PauloSantos manteve-se no ofício.Em casa montou a sua própriabancada, onde, depois de um diade trabalho, aproveitava as últimashoras do dia para arranjar relógiospara várias ourivesarias dacidade.Só no Natal toda a família sevoltava a juntar na loja, altura demaior movimento, mas no acto daseparação os irmãos fizeram umpacto: “acordámos que um dianos voltaríamos a juntar na em-presa”, diz Paulo Santos.E voltaram. Em 2000 os dois irmãosadquiriram as instalações daantiga Ramalho e Branco, passandoa loja a denominar-se OurivesariaBeto. Para além de manterem areparação, reforçam a componenteda venda de artigos em ouro eprata e igualmente de relógios.Chegaram também a ter uma partede mediação imobiliária, que entretantocessou actividade.Hoje trabalham na loja PauloSantos e a esposa Fátima Santos -Gilberto está em Inglaterra desde2006 a fazer uma especialização emrelógios de gama alta. Beto, aos 71anos, continua em casa a fazer oque sempre fez: sentar-se à bancadapara reparar relógios.A Ourivesaria Beto é uma sociedadeunipessoal e em tempos jáchegou a ter dois empregados. Osseus responsáveis não quiseram divulgara sua facturação anual.Joel Ribeirojribeiro@gazetacaldas.comArranjar uma máquina éuma satisfação enormeA relojaria é uma arte como as outras, embora semo mesmo reconhecimento e visibilidadePor muito simples que pareça, simplicidade é tudo o que arranjarum relógio não tem. Primeiro são as características decada marca - e os fabricantes são incontáveis - e modelo, depoisa singularidade de cada avaria, o tamanho quase microscópicodas peças que é preciso substituir, por vezes com a espessura deum fio de cabelo, sendo que nos relógios antigos já nem existempeças para substituição e têm que ser feitas à mão.Isto torna a relojoaria uma arte como tantas outras, emborasem o mesmo reconhecimento e visibilidade.Mas, para quem arranja um relógio, ver uma peça antigadanificada voltar a ganhar vida é qualquer coisa que não tempreço. “Dá-me um prazer enorme arranjar um relógio,pela minúcia que exige, e quanto maior for a complexi-dade, maior é a vontade de abraçar o desafio”, diz Beto.Aos 71 anos, continua a ter a mesma paixão que o levou acomeçar, há 54 anos atrás e ainda hoje é procurado pelas suasqualidades.Arranjar um relógio requer uma grande tranquilidade, peloque, agora, é de madrugada que desenvolve a actividade. “Hámuito mais silêncio e é preciso ter um controlo muitogrande sobre os movimentos. Durante o dia basta pas-sar um carro na rua para perturbar a concentração”,explica.J.R.Paulo Santos ainda adolescente na ourivesariado paiAo longo de 54 anos de carreira,Beto construiu importantelegado como especialista derecuperação de máquinas de relógios.Uma arte que os filhosherdaram e que querem aproveitaro melhor possível, atéporque hoje há muita falta deconhecimento na área e de genteque queira seguir a profissão.À Ourivesaria Beto vêm muitoscoleccionadores arranjar osseus relógios antigos. Algunssão da região Oeste, mas tambémvêm clientes da zona deLisboa, onde, diz Paulo Santos,a mensagem tem passado sobretudono passe a palavra.Apesar de ter criado umabase de sustentação com o comérciode artigos de ourivesaria,novos e usados, a apostana diferença faz-se pela especializaçãono conserto de relógios,nomeadamente os antigos.Com as marcas a chamaremcada vez mais a si o consertodos relógios, ora na fábrica, oranos agentes autorizados, “nãodão oportunidade de um re-lojoeiro como havia antesarranjar um relógio deles.Mas como existem muitosrelógios antigos, com 50, 100anos e mais, e o grande ob-jectivo desta casa é atraircoleccionadores e apreciadoresdestes relógios anti-gos para aqui consertaremas suas máquinas”, explicaPaulo Santos.Outra especialidade é a relojoariade alta gama, que apesarde ser bastante rara no nossopaís, é um mercado a explorar.Foi nesse sentido que Gilbertotentou a sorte, em 2006. Aproveitandoa mudança da mãe,Maria Antonieta, para Londres,Gilberto teve hipótese de ingressarnuma empresa de refe-CRONOLOGIACentrais193 | Dezembro | 2010O futuro está… no passadorência de Inglaterra no ramoda relojoaria de alta gama,onde trabalha com “as melho-res marcas do mundo”, frisa.Para se ter uma ideia, Gilbertoconta que o primeiro relógiocom que lidou foi umFrank Muller de valor superiora 210 mil euros.Pelas suas mãos passam,igualmente, muitas outrasmarcas que em Portugal sãopraticamente desconhecidas,como a Hublot, Audemars-Piguet,Piaget, Rolex, Cartier,entre muitas outras. Na empresainglesa, Gilberto é, aos 46anos, o funcionário mais novoreconhece a mais valia de trabalhare aprender com aquelesque considera os seus grandesmestres, Eddy, de origemiraquiana, e o português JoelFerreira, referências de váriasdestas marcas.“É uma especializaçãoque pode demorar 10 anos,todos os dias aparecem si-tuações novas”, sustenta. Naempresa, Gilberto tem formaçãocontínua com deslocaçõesfrequentes à Suíça, para aprendermais sobre uma marca específica.Esta é uma aprendizagemimportante para o futuro, tantoa nível pessoal, como da empresa.“Não existe muito estetipo de serviço em Portugal,mas um dia quando voltar,se me aparecer este tipo demarcas estarei preparado.E se não houver trabalho emPortugal, no estrangeiro hágrande solicitação porquehá uma falta enorme depessoal especializado”.Quando Gilberto Santos terminara sua formação, é vontadedo irmão, Paulo, seguirtambém esta especialização.J.R.1939 – Nasce Gilberto Augusto Jorge dos Santos, “Beto”, noBairro da Ponte1952 – Com 13 anos é admitido na Relojoaria Alcino1963 – Gilberto Santos muda-se para a Ourivesaria Sebastião1964 – Nasce Gilberto Santos, o primeiro filho1965 – Regressa à Relojoaria Alcino1968 – Nasce Paulo Santos, o segundo filho1970 – Parte para Angola, onde chega a trabalhar para aOmega e a Tissot1973 – Regressa às <strong>Caldas</strong> para a Ourivesaria Sebastião1977 – Gilberto Santos funda a Relojoaria Beto, em nomeindividual1980 – Gilberto Santos, filho, inicia a sua actividade na RelojoariaBeto1984 – O filho mais novo, Paulo Santos, inicia também a suaactividade na Relojoaria Beto2000 – A Relojoaria Beto passa a Ourivesaria Beto pela mãodos irmãos Gilberto e Paulo Santos