18Centrais26 | Novembro | 2010, VUMAMA EMPRESAMPRESA, , VÁRIAS VGERAÇÕESMercearia “O Ferreira” - O tradicional e o gourmet juLuís Ferreira (1896–1975) é recordadopelo neto Romeu como“um homem de pulso”. E foiesta firmeza do beneditense degema que ajudou ao sucesso dosdois negócios que abriu em 1926e que se traduziam num estabelecimentomuito normal naépoca - uma taberna e uma mercearia,divididas apenas por umaporta.Do primeiro negócio restamapenas as memórias dos seusfilhos e netos, e dos muitos homensque ao domingo, antes damissa, por lá passavam para beberos “pirolitos”, pequenos coposde aguardente a que chamavamde “mata-bicho”, dadasas suas comprovadíssimas propriedadesna protecção contradoenças e maleitas diversas.Já a mercearia ainda hoje éuma referência no comércio tradicionalda vila, mantendo clientesque há décadas ali se abastecem.E há de tudo naquelasprateleiras.Do casamento com Ana MariaBernardina Ferreira (1898–1987)nasceram quatro filhos: Maria,António, Joaquim e Ana. Os rapazesdesde cedo acompanharamos negócios do pai, e quandoAntónio, o mais velho, inicioua sua própria família, ficou coma taberna a seu cargo, mantendo-aaberta até à década de 80.A divisão dos negócios levoua uma mudança dos estabelecimentos,e na década de 60 amercearia “O Ferreira” muda-separa o local onde ainda hoje seencontra, na Rua da Serradinha.E foi na mercearia que JoaquimLuís Ferreira (nascido em 1929)trabalhou desde sempre. “Omeu pai trabalhou aqui todaa vida. A profissão dele émarceneiro, foi um dos mar-ceneiros da igreja daqui,mas com vinte e poucosanos começou a tomar contado negócio, tal como de-pois aconteceu comigo”, contaRomeu Ferreira.Em 1969 Joaquim Ferreira casacom Ana Rebelo Ferreira Luís(nascida em 1943) e, tal comotinha acontecido com o seu irmãoAntónio, assume o negóciodo pai. D. Ana, como todos osclientes a tratam, lembra-se bemdesses tempos. “Eu vim paraaqui trabalhar passados trêsmeses de me casar”, conta. Etudo era diferente. Se hoje sevende devidamente empacotado,na altura tudo era vendido avulso.“Pesava-se o açúcar, amassa, o arroz em pacotinhosde papel, uns pacoti-nhos de bico” que se lembra depassar horas a fazer.Além destes produtos, o azeite,o petróleo para as lamparinas- quando a electricidade paramuitos era ainda um privilégio -,Ana Maria Bernardina Ferreira e Luís FerreiraPais e filho. Romeu Ferreira projecta para o futuro o negócio iniciado pelo avô e que os paisem 1920, seis anos antes da abertura dageriram durante mais de três décadasmercearia e da tabernaeram produtos que ali levavammuita gente. O bacalhau, semprede boa qualidade e que osdonos da loja iam propositadamentebuscar à Figueira da Foz,é também uma das referênciasdo estabelecimento.Do património da merceariaainda fazem parte a balança usadana altura, com uma tabela quedava logo o preço de cada produto,as bombas que se usavampara retirar o petróleo dos bidõesde 50 litros em que esteslhes o biberão na boca, e elesbebiam sozinhos, que eu ti-nha que vir atender clientes”,conta.Olhando para trás, Ana FerreiraLuís garante que as diferençasentre aquela altura e os diasde hoje são abismais. “Traba-lhou-se muito naquele tempo,não tínhamos empregadospara nada. Era só eu e o meumarido”. O facto de viverem porcima da loja fazia com que a vidafamiliar e o trabalho se mistubretudoa partir da década de 80,garante de emprego, muitoseram os que pagavam as suascontas apenas quando recebiamo ordenado. “Quando por vezesnão recebiam logo vi-nham cá e pediam ‘Oh senhorJoaquim, posso pagar daquipor mais oito dias ou quinzedias?’. Há outros que espetaramo calote, nunca mais pa-garam”, lembra D. Ana.Hoje acabaram-se os livros eo hábito de vender fiado. Massuas queixas e desabafos, hojetudo é bem diferente. “Ninguémrefilava, as pessoas andavammais calmas, tudo espe-rava na sua vez, ninguématropelava ninguém. Agoraos clientes vêm todos commuita pressa”, diz D. Ana.Já o filho, Romeu, lembra-se“das sacas de açúcar louroque traziam uns grãos pre-tos, da humidade do açúcar.Davam-nos esses grãos eeram os nossos caramelos”.Data de 1926 a fundação da mercearia “O Ferreira”, a mais antiga da Benedita e uma das poucas queresiste numa vila onde nos últimos anos se fixaram quatro supermercados e hipermercados. Hoje, apequena loja é gerida por Romeu Ferreira, neto do fundador, Luís Ferreira.Bem longe dos tempos em que ali tudo era vendido avulso, há um sem número de produtos paradescobrir pelas prateleiras, dos mais antigos e tradicionais aos mais sofisticados, sempre com umaelevada aposta na qualidade. Esta é uma das razões pelas quais a mercearia tem conseguido fidelizarmuitos clientes e enfrenta o futuro de cabeça erguida e sem medo.chegavam à loja e uma máquinaregistadora que funcionava àmanivela quando a luz eléctricafalhava.D. Ana lembra-se, quando “acasa era muito pequenina etinha um balcãozinho e aspessoas não passavam paradentro, pediam tudo do ladode fora. Não era como agora,que são as pessoas que seservem”. Lembra-se de quandolevava para junto de si os filhosainda bebés – Joaquim AntónioLuís Ferreira (nascido em 1970) eRomeu Luís Rebelo Ferreira (nascidoem 1974). “Criei os meusfilhos aqui. Tinha ali uma cozinha,trazia-os para lá, deitava-os,coitadinhos, punha-rassem quase sempre. Depois osfilhos foram crescendo e começarama ajudar. A mãe recordaque muitas vezes os filhos iamajudar a pesar os produtos aosábado.NO TEMPO EM QUE SECOMPRAVA FIADOUma das principais diferençasera a forma como os clientespagavam o que compravam.O fiado ditava a regra e “eratudo para o livro”. As pessoasiam aviar-se e o que levavam eraapontado num livro. As contaseram feitas à semana, ao mês,como se combinasse. Numa terraonde as fábricas foram, so-por vezes, e sendo a proximidadena relação entre vendedorese clientes uma característica únicado comércio tradicional, porvezes ainda acontece que fiquena caixa um ou outro papelitoque é pago mais tarde.Da altura, restam não só asrecordações mas também muitosclientes. Uns iam lá na alturae mantêm-se fiéis à casa. Outrosiam com os pais ‘ao Ferreira’ fazeras compras para casa e hoje,homens e mulheres feitos, continuama gostar de ali ir. Mas sehá umas décadas o merceeiro“era o segundo padre da fre-guesia” e tinha sempre umapalavra para dar aos seus clientese um tempinho para ouvir asDA VENDA AVULSO AOSPRODUTOS EMPACOTADOSNa década de 80 foi proibida avenda avulso e dá-se uma enormemudança na oferta da mercearia“O Ferreira”, onde passoua vender-se tudo devidamenteembalado. Pouco a pouco foram-setambém introduzindonovos produtos, como o pão,feito pelos melhores padeirosda terra, ou os tão afamadossabonetes e águas de colóniada Ach Brito, artigos que hojese usam nas mais luxuosas casasdo país e da Europa (vendidosa peso de ouro em muitoslocais) e que ainda povoam asprateleiras da loja.Os clientes, que habitualmenteaos fins-de-semana iam àpraça aviar-se de frutas e legumes,começaram a pedir que sevendessem estes artigos namercearia. E quantos jovensadultos não se lembram de, aindacrianças, irem ‘ao Ferreira’comprar rebuçados? Aos produtostradicionais foram-se juntandoas novidades que iamaparecendo no mercado e amercearia encheu-se de produtosalimentares, artigos de higienepessoal e de limpeza, comidapara animais, ganchos eredes para os carrapitos dassenhoras, bilhas de gás.Nos anos 80 e 90 a mercearialutou para sobreviver, quandocomeçaram a aparecer na vila ossupermercados. E a aposta, quese mostrou acertada, foi na qualidadedos produtos como factordiferenciador. É em 2002 que RomeuFerreira se junta aos pais nonegócio da família. Formado emSistemas de Informação Geográficao jovem, na altura com 28anos, não conseguiu trabalho nasua área e decide que é precisosangue novo para que o negócioiniciado pelo seu avô resista notempo. Dois anos depois, um acidenteafasta o pai do trabalho naloja e foi nessa altura que o rapazse torna gerente da mercearia. Amãe diz que “é pena, porqueisto é muito cansativo, trabalha-semuito e ganha-se pou-co e é muita chatice”. O filhogarante que “é um gosto”.Joana Fialhojfialho@gazetacaldas.com
ntos num negócio com 84 anos na BeneditaO filho mais velho de Ana e Joaquim Ferreira,apanhado em 1985 com a mão dentro do boião dosrebuçados“As grandes superfícies já não nos fazem mal”Centrais1926 | Novembro | 2010Durante muitos anos, a mercearia“O Ferreira” não tevequalquer toldo ou placa que aidentificasse como estabelecimentocomercial. A projecçãode uma imagem para o exteriorfoi uma das grandes diferençasintroduzidas por RomeuFerreira no negócio dos pais edo avô, que escolheu como lema“Desde 1926 para o Bem Servir”.Mas quem não conhece amercearia por dentro, está longede imaginar que numa áreacom cerca de 80 metros quadradosse pode encontrar umtotal de cerca de seis mil referências,dos artigos mais tradicionaisaos agora tão em vogaprodutos gourmet e biológicos.No mesmo espaço, onde sepode comprar granulado paracoelhos ou o sabão azul e brancotão conhecido das donas decasa, encontra-se também ca-cada e tem que estar tudomuito bem organizado” eisso implica uma selecção cuidadados produtos que ali sevendem. A aposta é, assim, feitaem “produtos de grandequalidade e principalmentemarcas nacionais”. E é istoque tem contribuído para manteros clientes ano após ano.Os vinhos são um bom exemplo.O gerente da mercearia garanteque na garrafeira da lojase podem encontrar 200 vinhosdiferentes, “entre os quais os50 melhores do país”. Às melhoresmarcas nacionais juntam-seartigos conhecidos internacionalmente,como os chásda marca inglesa Twinings.Uma aposta recente, mas quecomeça já a dar que falar, umavez que se contam pelos dedosde uma mão os locais onde amarca está à venda no país.“Quem conhece chá,Joaquim Ferreira e Ana Luís na sua mercearia em 1984 e na semana passadaviar, mel em cortiço, trufas eaté o molho de melaço com quese comem as panquecas norteamericanase que muito dificilmentese encontra até nos maioreshipermercados.“Quando fazemos o balançoanual é que percebemosa quantidade de produ-tos que temos aqui”, diz Romeu,que prefere não divulgaro volume de negócios da mercearia,cujo capital social é de10 mil euros. E o que torna oinventário exequível é a informatizaçãodo sistema, sinal damodernização que projecta aloja para o futuro. Um futuroque se faz também através daInternet e de uma loja onlinequem gosta mesmo e quemse interessa um bocadinhopela sua história fica admi-rado por ver o Twinings àvenda aqui. Aconteceu noutrodia estarem umas senho-ras lá fora e quando viram ochá na montra ficaram ad-miradíssimas. Entraram,compraram logo umas latase acharam fascinante umaloja de província ter estechá”, conta.Os chás são, de resto, um dosprodutos em que a merceariaaposta mais. À Twinings juntasea marca Lipton e uma grandediversidade de chás mais específicospara bem-estar e saúde,como problemas de fígadomercearia, que só vende bolose doces frescos. “Sou o pri-meiro a dizer ao cliente queo bolo é do dia anterior, ocliente só o compra se qui-ser, mas fica avisado. Achoque a casa vence mais poresta honestidade e sinceri-dade com o cliente e peloatendimento personalizadoque mantemos já há muitosanos”, explica.CLIENTES VOLTAM AOCOMÉRCIO TRADICIONALQuando perguntamos a RomeuFerreira se o futuro é encarado comoptimismo, o “sim” reforçado trêsvezes não deixa margens para dúvidas.vantagens das grandes superfíciese aponta três factorespara o seu sucesso. Em primeirolugar, “é porque é umamoda que surgiu em Portugalaí há 15 anos e foi im-portada de fora”, depois éinegável a mais-valia que é oparque de estacionamento doshipermercados. Por último,acredita que em espaços maiores“as pessoas não se sen-tem tão vigiadas e não têmtanta vergonha de escolheros produtos mais baratos,ainda que piores”.No extremo oposto estão asmercearias, locais onde toda agente se conhece. Um facto queé simultaneamente uma des-superfícies nunca sabemquem é que os vai atender”,diz Romeu. Outra coisa que levaas pessoas a optarem pelo pequenocomércio é “saberemque se tiverem algum pro-blema que seja, há alguémque os ouve, e nos outroslados não. O merceeiro é osegundo padre na terra”.E quem acha que o comérciotradicional tem os dias contados,desengane-se. Romeu Ferreiradiz que se há uns anos tiveramque lutar contra as grandessuperfícies, hoje têm o seulugar bem definido e aos clientesfiéis juntam-se agora aquelesque começam a perceberque “nos supermercados“há menos tentação para secomprar o que não é preci-so em casa”, garante.E mais uma vez a qualidade,sobretudo nos produtos alimentares,marca a diferença.Há quatro anos foi implementadona mercearia o sistemaHACCP, que garante a segurançados alimentos, tanto ao nívelda sua produção como dasua comercialização. Um passo“fundamental” numa casa“aberta há 86 anos que nuncateve um problema alimen-tar”. E além de Romeu e damãe, o estabelecimento dá aindatrabalho a uma engenheiraalimentar. Nesse aspecto, a famíliaFerreira foi sempre muitoda mercearia (em ou estômago, diabetes ou“O nosso mercado é muivantageme uma vantagem dasnem todos os produtos sãorigorosa: “preferimos perderwww.merceari aoferreira.c om),utilizada sobretudo por clientesde Lisboa e Algarve.Mas como se consegue tertanta coisa num espaço tão pequeno?“As nossas pratelei-ras só têm um produto detranstorno do sono. “Neste mo-mento temos aí uns 30 chásdiferentes na nossa casa”,afiança o gerente.Já nos produtos de pastelaria,há um pasteleiro da zona aproduzir diariamente para ato específico e é muito peque-nininho, para termos medodas grandes superfícies. Elescomem-se uns aos outros, anós não nos fazem já mal. Jáfizeram, agora não”, diz.Romeu sabe bem quais aspequenas lojas. É que há quemnão troque o atendimento personalizadopor nada. “Aqui, seas pessoas têm alguma coisaa reclamar vêm falar di-rectamente com o dono daloja, enquanto nas grandesmais baratos que no comér-cio tradicional”. E dá o exemplo:“nos frescos e na fruta,os nossos preços são maisbaixos, além de que os pro-dutos são melhores”. Alémdisso, no pequeno comérciodinheiro a vender algo quepossa já não estar nas me-lhores condições. Primeiro aspessoas, depois o dinheiro”.Joana Fialhojfialho@gazetacaldas.comA imagem externa da loja é uma das apostas de Romeu Ferreira, quetambém investiu numa loja online<strong>Cronologia</strong>1896 – Nasce Luís Ferreira na Benedita1926 – Luís Ferreira abre a mercearia, juntamentecom uma tabernaDécada de 60 – Dá-se a divisão dos doisnegócios e a mercearia muda para as instalaçõesonde ainda hoje se encontra1929 – Nasce o filho, Joaquim Ferreira1969 – Joaquim Ferreira casa-se com AnaLuís e fica com a mercearia1970 – Nasce o filho mais velho, JoaquimFerreira, que optaria por ser professor1974 – Nasce Romeu Ferreira, que viria aser o sucessor do negócio da família2002 – Romeu Ferreira começa a trabalharcom os pais a tempo inteiro2004 – Romeu assume a gestão do negócio