edição de 26 de março de 2018
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STORYTELLER<br />
dundanim/iStock<br />
Nojo<br />
É o que estou sentindo hoje, navegando<br />
pelo Facebook como quem entra no<br />
IML e se <strong>de</strong>para com as vítimas da vida<br />
LuLa Vieira<br />
ês?! Ninguém assistiu ao formidá-<br />
enterro <strong>de</strong> tua última quimera.<br />
“Vvel<br />
Somente a ingratidão — esta pantera — foi<br />
tua companheira inseparável! Acostuma-te<br />
à lama que te espera! O Homem, que, nesta<br />
terra miserável, mora entre feras, sente<br />
inevitável necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> também ser fera.<br />
Toma um fósforo, acen<strong>de</strong> teu cigarro! O<br />
beijo, amigo, é a véspera do escarro. A mão<br />
que afaga é a mesma que apedreja. Se a alguém<br />
causa inda pena a tua chaga, apedreja<br />
essa mão vil que te afaga, escarra nessa<br />
boca que te beija!”<br />
Augusto dos Anjos, autor <strong>de</strong>ste poema<br />
(Versos Íntimos), não tinha Facebook, nem<br />
internet, nem ao menos televisão ou rádio.<br />
Mas a <strong>de</strong>scrença no ser humano perpassa<br />
por toda sua obra.<br />
Contra a polícia, o Temer, a Globo, o PT.<br />
Fizeram do cadáver da pobre mulher um<br />
palanque. Até a reforma da Previdência e<br />
as leis trabalhistas entraram na pauta, assim<br />
como reclamar dos que calaram e dos<br />
que falaram, dos que se omitiram e dos que<br />
choraram em público. Todos quiseram se<br />
tornar proprietários do <strong>de</strong>funto, numa necrofilia<br />
insuportável.<br />
Essa morta me pertence e só eu sei como<br />
pranteá-la era o resumo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> parte<br />
dos posts no Face.<br />
Pessoas que eu conheço, e até me pareciam<br />
razoáveis, não tiveram vergonha em<br />
exibir sua burrice, pequenez e ignorância,<br />
termos que não são redundantes e adjetivam<br />
várias características do cérebro e da<br />
alma.<br />
E não sejamos injustos: pequenos, burros<br />
e ignorantes po<strong>de</strong>m vestir toga ou jaleco,<br />
exibir “doutor” antes do nome ou carregarem<br />
sobrenomes <strong>de</strong> avenidas.<br />
É como me sinto hoje, navegando pelo<br />
Facebook como quem entra no IML e se <strong>de</strong>para<br />
com as vítimas da vida exibindo sem<br />
pudor suas entranhas podres, suas malcheirosas<br />
intimida<strong>de</strong>s num misto <strong>de</strong> sangue<br />
e merda.<br />
Confesso que, mesmo com 70 anos <strong>de</strong><br />
ida<strong>de</strong>, não supunha o quanto as pessoas<br />
po<strong>de</strong>m carregar <strong>de</strong> malda<strong>de</strong>, inveja, ódio e<br />
preconceito <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si. E como escrevem<br />
mal, pensam mal e se explicam mal!<br />
O ressentimento, a generalização e o<br />
primarismo viram posts pestilentos, irresponsáveis<br />
diante do que po<strong>de</strong>m fazer <strong>de</strong><br />
pernicioso contra outras pessoas, entida<strong>de</strong>s<br />
e o próprio país.<br />
O caso da vereadora assassinada, amorosa<br />
criatura para todos que a conheceram,<br />
virou pretexto para os mais <strong>de</strong>svairados<br />
comentários, caminho para se distribuir<br />
preconceitos e ódios <strong>de</strong> todo tipo.<br />
E assim vamos para as eleições, assim<br />
são as opiniões sobre a violência, <strong>de</strong>ssa forma<br />
se preten<strong>de</strong> modificar o panorama político<br />
do país.<br />
Ainda que na maioria das vezes vinda<br />
<strong>de</strong> militares reformados ou <strong>de</strong> vivan<strong>de</strong>iras,<br />
alguns fardados não se fizeram <strong>de</strong> rogados<br />
em distribuir sandices, ódios e rastaquerices.<br />
O único alento que tenho hoje, quando<br />
me sento para escrever a coluna, é que tenho<br />
conseguido garimpar opiniões sensatas<br />
entre a montanha <strong>de</strong> sandices. Mesmo<br />
<strong>de</strong> pessoas com as quais não concordo,<br />
consigo perceber boa-fé e bom propósito.<br />
E, por uma tremenda coincidência, estou<br />
lendo um livro sobre a Ida<strong>de</strong> Média e<br />
vendo o quanto, apesar <strong>de</strong> tudo, a humanida<strong>de</strong><br />
evoluiu para melhor.<br />
Claro que meia hora <strong>de</strong> noticiário na TV,<br />
uma rápida leitura nos jornais ou alguns<br />
minutos no Facebook são capazes <strong>de</strong> causar<br />
um enorme <strong>de</strong>sânimo. Mas passa, como<br />
tudo passa, só por isso que continuamos. A<br />
não ser os que foram mortos.<br />
Lula Vieira é publicitário, diretor da<br />
Mesa Consultoria <strong>de</strong> Comunicação,<br />
radialista, escritor, editor e professor<br />
lulavieira@grupomesa.com.br<br />
<strong>26</strong> <strong>26</strong> <strong>de</strong> março <strong>de</strong> <strong>2018</strong> - jornal propmark