30.03.2018 Views

edição de 2 de abril de 2018

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

STORYTELLER<br />

Milan Marjanovic/iStock<br />

Ser avô<br />

É um ser equipamento <strong>de</strong> prazer,<br />

<strong>de</strong> alegria. Espera-se pouco <strong>de</strong>le<br />

LuLa Vieira<br />

Chame-me <strong>de</strong> avô. Finalmente <strong>de</strong>scobri<br />

para que serve a vida: para ser avô.<br />

É mais que pai (não sei direito como é ser<br />

mãe), mais do que qualquer outra coisa<br />

que conheço. A gente faz muita coisa <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

que se percebe, e, a cada vez que algo<br />

acontece que traz felicida<strong>de</strong>, vem sempre a<br />

sensação <strong>de</strong> que valeu a pena viver. Mas é<br />

só quando uma criança <strong>de</strong> parcos anos se<br />

ilumina ao te ver, sorri extasiada e exclama<br />

“vovôooo!” que felicida<strong>de</strong> ganha outra<br />

dimensão. Filhos, é uma <strong>de</strong>lícia tê-los, mas<br />

há sempre uma responsabilida<strong>de</strong> a diminuir<br />

a fruição do gozo, pois há que ensinar,<br />

proteger, formar e manter. Neto não, neta<br />

não. Um avô não tem nenhuma obrigação<br />

e sobre ele não há nenhuma expectativa. É<br />

um ser equipamento <strong>de</strong> prazer, <strong>de</strong> alegria.<br />

Espera-se pouco <strong>de</strong>le. Apenas ausência <strong>de</strong><br />

horários, permanente disposição e uma falha<br />

vocabular. A absoluta impossibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> dizer não.<br />

Avô estraga tudo, <strong>de</strong>ixa quebrar, arruína<br />

celulares, tabletops e velhos bibelôs <strong>de</strong><br />

família, em troca <strong>de</strong> um sorriso. E cozinha<br />

pão <strong>de</strong> queijo, amassa cenourinha, corta<br />

maçã, verifica a água do banho e não se<br />

importa em <strong>de</strong>ixar inundar o banheiro ou<br />

o quarto. Aliás, banho é coisa séria. Seriíssima.<br />

Patinhar na água é parte integrante<br />

da preparação para a vida, pois é um misto<br />

<strong>de</strong> exercício, treinamento <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nação<br />

motora e primeiras noções <strong>de</strong> física. O fator<br />

higiênico do banho, <strong>de</strong>ixe para os pais, preocupados<br />

com miuçalhas.<br />

Banho para um avô é apenas uma coisa<br />

lúdica, uma volta à paz uterina com a vantagem<br />

<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r fazer uma enorme farra.<br />

Dentre as habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ser avô está o fato<br />

<strong>de</strong> ter um vocabulário bastante elástico:<br />

gluglu, nhamenhame, miau, cocó, au-au e<br />

outras criações que mudam muito <strong>de</strong> criança<br />

para criança. Por experiência própria,<br />

dou um conselho a todos os avós iniciantes:<br />

cuidado com as palavras ditas <strong>de</strong> baixo<br />

calão. Uma criança <strong>de</strong> dois anos é incapaz<br />

<strong>de</strong> dizer corretamente palavras simples como<br />

água, comida, sapato, mesa e dormir.<br />

Mas é capaz <strong>de</strong> repetir putaqueopariu, caralho<br />

ou merda com a maior clareza. Portanto,<br />

treine xingar ca<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> fascistas,<br />

cantos <strong>de</strong> mesa <strong>de</strong> reacionários, <strong>de</strong>graus<br />

escondidos <strong>de</strong> neoliberais. Não os man<strong>de</strong><br />

tomar no olho do cu, por mais que mereçam.<br />

Não é nada agradável ver aquele encanto<br />

<strong>de</strong> criança que você ama acima <strong>de</strong><br />

tudo, sugerindo à vizinha esse tipo <strong>de</strong> sexo<br />

não ortodoxo.<br />

E o que é pior: quanto maior o espanto,<br />

mais essas criaturinhas perseguidoras <strong>de</strong><br />

sucesso (como todos nós) repetem. Se fizer<br />

cara feia, então, po<strong>de</strong> ter certeza que no<br />

primeiro restaurante que o anjinho <strong>de</strong>ixar<br />

cair uma colher vai ser acompanhada <strong>de</strong><br />

um sonoro e irretorquível “caralho!”. Por<br />

isso, o psicoterapeuta infantil Lula Vieira<br />

recomenda: nada <strong>de</strong> palavrões. Por mais<br />

que isso seja difícil. Ser avô (ser avó também<br />

é lindo, mas minhas netas são netas<br />

<strong>de</strong> escritora e ela sabe <strong>de</strong>screver até melhor<br />

do que eu o que significa essa dupla maternida<strong>de</strong>),<br />

bem, eu dizia que ser avô também<br />

é ter saco. Muito saco. Mas muito saco mesmo.<br />

Só isso explica assistir, sem explodir,<br />

50 vezes num único dia a Galinha Pintadinha<br />

ou a Turma do Planeta.<br />

Ou mesmo a Anitta, pois criança é sobretudo<br />

eclética. Para falar a verda<strong>de</strong>, nem<br />

Sonata em Ré Maior resiste a 20 repetições,<br />

uma atrás da outra. Ser avô traz outra gran<strong>de</strong><br />

vantagem: a confraria entre amigos na<br />

mesma condição. Zuenir Ventura, Luiz Fernando<br />

Veríssimo, Marcelo Diniz, Zé Guilherme<br />

Vereza e muitos outros cidadãos da<br />

maior importância social, intelectual e cívica<br />

não sentem o menor pudor em repetir<br />

as gracinhas <strong>de</strong> netos e netas.<br />

Escrevo esta coluna antes da Páscoa,<br />

pois a data <strong>de</strong> fechamento imposta a nós<br />

mortais pelas maravilhosas editoras da<br />

casa é draconiana. Mas eu nunca pensei<br />

que a minha inexaurível capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser<br />

ridículo chegasse ao ponto <strong>de</strong> procurar coelhos<br />

em lojas <strong>de</strong> animais, além <strong>de</strong> pintinhos<br />

amarelinhos. Aliás, eu telefonei para<br />

uma <strong>de</strong>las – Baba Cão, se não me engano – e<br />

quase ia perguntando para o rapaz que me<br />

aten<strong>de</strong>u se ele tinha pintinho. Parei antes<br />

<strong>de</strong> falar, embora eu tivesse certeza que ele<br />

ia mandar eu consultar minha mãe para<br />

saber o que ela achava. Felizmente consegui<br />

fazer um circunlóquio e <strong>de</strong>scobri que,<br />

tal como uma amiga já tinha me alertado,<br />

ultimamente este artigo está em falta. Mas<br />

encomen<strong>de</strong>i os tais pintinhos, que farão<br />

companhia às minhas cocós, meus miaus e<br />

os au-aus que tenho em casa.<br />

Lula Vieira é publicitário, diretor da<br />

Mesa Consultoria <strong>de</strong> Comunicação,<br />

radialista, escritor, editor e professor<br />

lulavieira@grupomesa.com.br<br />

jornal propmark - 2 <strong>de</strong> <strong>abril</strong> <strong>de</strong> <strong>2018</strong> 31

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!