You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
inspiração<br />
Desmond is amazing<br />
“A nossa estrutura social nos transforma naturalmente em algo<br />
pior do que os vilões e algozes dos filmes: nos torna passivos”<br />
Breno Moreira<br />
especial para o ProPMarK<br />
Acordo cedo. A luz do sol, que <strong>de</strong>ixo entrar<br />
propositadamente em meu quarto,<br />
atinge meus olhos e me faz perceber que<br />
já está na hora <strong>de</strong> ir. Ir para on<strong>de</strong> mesmo?<br />
Escovo meus <strong>de</strong>ntes olhando o meu reflexo<br />
no espelho: um homem branco, magro,<br />
heterossexual e cisgênero. Ele parece saber<br />
qual é o próximo passo. Pego minhas chaves<br />
e saio <strong>de</strong> casa convicto.<br />
Meus movimentos são rápidos e precisos<br />
como os <strong>de</strong> um homem que sabe exatamente<br />
o que está fazendo. Sua vida toda fora assim:<br />
disseram a ele o que fazer. Des<strong>de</strong> que<br />
me entendo por gente, sou incentivado a<br />
fazer coisas apenas porque <strong>de</strong>vo. É o certo.<br />
Amar os pais, ter um bom emprego, não fazer<br />
mal a ninguém, visitar meu avô toda semana,<br />
ganhar dinheiro, comprar uma casa,<br />
ser feliz.<br />
Demorou até que eu percebesse que<br />
não fazer nada ou fazer apenas o certo estava<br />
longe <strong>de</strong> ser o mesmo que não fazer o<br />
mal. Logo eu, que nunca conseguira matar<br />
um mosquito em minha vida, em silêncio<br />
estava oprimindo, machucando e tirando<br />
a voz <strong>de</strong> outras pessoas a quem eu queria<br />
<strong>de</strong>monstrar amor em vez <strong>de</strong> provocar dor.<br />
Não fazia sentido que duas criaturas que<br />
não se conheciam, não se tocavam, não se<br />
olhavam po<strong>de</strong>riam se fazer mal. Não para<br />
mim, no auge dos meus 20 e poucos anos<br />
privilegiados.<br />
A nossa estrutura social nos transforma<br />
naturalmente em algo pior do que<br />
os vilões e algozes dos filmes: nos torna<br />
passivos. Um mero espectador das injustiças<br />
diárias que nos circundam. Foi justamente<br />
tentando fazer alguma coisa que<br />
eu <strong>de</strong>scobri que o cinema, minha maior<br />
paixão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que ganhei minha primeira<br />
polaroid aos 7 anos, seria o meu jeito, não<br />
<strong>de</strong> me tornar uma espécie <strong>de</strong> herói, mas<br />
<strong>de</strong> usar minha voz para amplificar outras<br />
que, antes, seriam silenciadas; usar minha<br />
câmera para distribuir imagens que<br />
seriam censuradas; usar o meu acesso<br />
para ce<strong>de</strong>r local <strong>de</strong> fala e oportunida<strong>de</strong><br />
para todos aqueles que não tiveram as<br />
mesmas chances e sorte que eu.<br />
Os personagens dos meus filmes, embora<br />
às vezes sejam fictícios, são sempre<br />
muito reais em minha cabeça. Minha<br />
mente tenta solucionar seus problemas<br />
e meu coração sofre suas dores. Recentemente,<br />
lancei um curta-metragem intitulado<br />
Desmond is Amazing, sobre o Desmond<br />
Napoles, uma criança drag <strong>de</strong> Nova<br />
York doce e sensível, incapaz <strong>de</strong> fazer mal<br />
a ninguém. Exceto quando quis colocar<br />
um vestido para ir à escola. De vestido,<br />
o menino se tornou um vilão. Desmond<br />
se tornou alvo da própria existência e, <strong>de</strong><br />
alguma forma, o meu filme ajudou o público<br />
a enten<strong>de</strong>r que não existiam aqueles<br />
termos feios que usavam para se referir a<br />
ele na internet: existia apenas liberda<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> expressão e amor incondicional. Ele é<br />
uma criança feliz e muito amada, que não<br />
abria espaço para palavras <strong>de</strong> ódio.<br />
Em breve, vou lançar um documentário<br />
longa-metragem chamado Jambalaia,<br />
que leva o nome do complexo <strong>de</strong> prédios<br />
inacabados em Campo Gran<strong>de</strong>, no Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro, marcado por entrevistas com os<br />
moradores: 400 famílias que não teriam<br />
outra opção além daquele espaço, às vezes<br />
sem pare<strong>de</strong>, às vezes sem teto, mas sempre<br />
sem esgoto, luz ou água encanada. Quando<br />
escovo meus <strong>de</strong>ntes e me olho no espelho,<br />
lembro da Jurema e me pergunto se ela conseguiu<br />
sair da cama hoje.<br />
Jurema morava no Jambalaia, tinha <strong>de</strong>pressão<br />
e não sabia o que ia fazer quando<br />
a prefeitura fosse <strong>de</strong>molir os prédios. Ela<br />
era uma <strong>de</strong>ntre todas as pessoas que não<br />
tinham para on<strong>de</strong> ir. O aluguel social nunca<br />
vai ser suficiente. Mesmo que ela consiga<br />
receber o benefício, ele tem valida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
três meses. Eu penso sobre o que vai ser <strong>de</strong><br />
Jurema.<br />
Por causa <strong>de</strong>ssas pessoas, como o Desmond<br />
e a Jurema, é que eu me levanto todos<br />
os dias, <strong>de</strong>ixo o sol entrar, pego minhas<br />
chaves e saio <strong>de</strong> casa convicto das histórias<br />
que quero contar, das reflexões, sensações<br />
e emoções que quero provocar.<br />
Eu quero, eu preciso.<br />
Todos nós precisamos fazer alguma coisa.<br />
Mesmo que ainda não saibamos disso.<br />
Breno Moreira é sócio e diretor da produtora Capuri<br />
24 4 <strong>de</strong> <strong>novembro</strong> <strong>de</strong> <strong>2019</strong> - jornal propmark