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edição de 4 de novembro de 2019

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inspiração<br />

Desmond is amazing<br />

“A nossa estrutura social nos transforma naturalmente em algo<br />

pior do que os vilões e algozes dos filmes: nos torna passivos”<br />

Breno Moreira<br />

especial para o ProPMarK<br />

Acordo cedo. A luz do sol, que <strong>de</strong>ixo entrar<br />

propositadamente em meu quarto,<br />

atinge meus olhos e me faz perceber que<br />

já está na hora <strong>de</strong> ir. Ir para on<strong>de</strong> mesmo?<br />

Escovo meus <strong>de</strong>ntes olhando o meu reflexo<br />

no espelho: um homem branco, magro,<br />

heterossexual e cisgênero. Ele parece saber<br />

qual é o próximo passo. Pego minhas chaves<br />

e saio <strong>de</strong> casa convicto.<br />

Meus movimentos são rápidos e precisos<br />

como os <strong>de</strong> um homem que sabe exatamente<br />

o que está fazendo. Sua vida toda fora assim:<br />

disseram a ele o que fazer. Des<strong>de</strong> que<br />

me entendo por gente, sou incentivado a<br />

fazer coisas apenas porque <strong>de</strong>vo. É o certo.<br />

Amar os pais, ter um bom emprego, não fazer<br />

mal a ninguém, visitar meu avô toda semana,<br />

ganhar dinheiro, comprar uma casa,<br />

ser feliz.<br />

Demorou até que eu percebesse que<br />

não fazer nada ou fazer apenas o certo estava<br />

longe <strong>de</strong> ser o mesmo que não fazer o<br />

mal. Logo eu, que nunca conseguira matar<br />

um mosquito em minha vida, em silêncio<br />

estava oprimindo, machucando e tirando<br />

a voz <strong>de</strong> outras pessoas a quem eu queria<br />

<strong>de</strong>monstrar amor em vez <strong>de</strong> provocar dor.<br />

Não fazia sentido que duas criaturas que<br />

não se conheciam, não se tocavam, não se<br />

olhavam po<strong>de</strong>riam se fazer mal. Não para<br />

mim, no auge dos meus 20 e poucos anos<br />

privilegiados.<br />

A nossa estrutura social nos transforma<br />

naturalmente em algo pior do que<br />

os vilões e algozes dos filmes: nos torna<br />

passivos. Um mero espectador das injustiças<br />

diárias que nos circundam. Foi justamente<br />

tentando fazer alguma coisa que<br />

eu <strong>de</strong>scobri que o cinema, minha maior<br />

paixão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que ganhei minha primeira<br />

polaroid aos 7 anos, seria o meu jeito, não<br />

<strong>de</strong> me tornar uma espécie <strong>de</strong> herói, mas<br />

<strong>de</strong> usar minha voz para amplificar outras<br />

que, antes, seriam silenciadas; usar minha<br />

câmera para distribuir imagens que<br />

seriam censuradas; usar o meu acesso<br />

para ce<strong>de</strong>r local <strong>de</strong> fala e oportunida<strong>de</strong><br />

para todos aqueles que não tiveram as<br />

mesmas chances e sorte que eu.<br />

Os personagens dos meus filmes, embora<br />

às vezes sejam fictícios, são sempre<br />

muito reais em minha cabeça. Minha<br />

mente tenta solucionar seus problemas<br />

e meu coração sofre suas dores. Recentemente,<br />

lancei um curta-metragem intitulado<br />

Desmond is Amazing, sobre o Desmond<br />

Napoles, uma criança drag <strong>de</strong> Nova<br />

York doce e sensível, incapaz <strong>de</strong> fazer mal<br />

a ninguém. Exceto quando quis colocar<br />

um vestido para ir à escola. De vestido,<br />

o menino se tornou um vilão. Desmond<br />

se tornou alvo da própria existência e, <strong>de</strong><br />

alguma forma, o meu filme ajudou o público<br />

a enten<strong>de</strong>r que não existiam aqueles<br />

termos feios que usavam para se referir a<br />

ele na internet: existia apenas liberda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> expressão e amor incondicional. Ele é<br />

uma criança feliz e muito amada, que não<br />

abria espaço para palavras <strong>de</strong> ódio.<br />

Em breve, vou lançar um documentário<br />

longa-metragem chamado Jambalaia,<br />

que leva o nome do complexo <strong>de</strong> prédios<br />

inacabados em Campo Gran<strong>de</strong>, no Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, marcado por entrevistas com os<br />

moradores: 400 famílias que não teriam<br />

outra opção além daquele espaço, às vezes<br />

sem pare<strong>de</strong>, às vezes sem teto, mas sempre<br />

sem esgoto, luz ou água encanada. Quando<br />

escovo meus <strong>de</strong>ntes e me olho no espelho,<br />

lembro da Jurema e me pergunto se ela conseguiu<br />

sair da cama hoje.<br />

Jurema morava no Jambalaia, tinha <strong>de</strong>pressão<br />

e não sabia o que ia fazer quando<br />

a prefeitura fosse <strong>de</strong>molir os prédios. Ela<br />

era uma <strong>de</strong>ntre todas as pessoas que não<br />

tinham para on<strong>de</strong> ir. O aluguel social nunca<br />

vai ser suficiente. Mesmo que ela consiga<br />

receber o benefício, ele tem valida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

três meses. Eu penso sobre o que vai ser <strong>de</strong><br />

Jurema.<br />

Por causa <strong>de</strong>ssas pessoas, como o Desmond<br />

e a Jurema, é que eu me levanto todos<br />

os dias, <strong>de</strong>ixo o sol entrar, pego minhas<br />

chaves e saio <strong>de</strong> casa convicto das histórias<br />

que quero contar, das reflexões, sensações<br />

e emoções que quero provocar.<br />

Eu quero, eu preciso.<br />

Todos nós precisamos fazer alguma coisa.<br />

Mesmo que ainda não saibamos disso.<br />

Breno Moreira é sócio e diretor da produtora Capuri<br />

24 4 <strong>de</strong> <strong>novembro</strong> <strong>de</strong> <strong>2019</strong> - jornal propmark

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