utilizados referenciais <strong>da</strong>s Ciências Sociais, em particular <strong>da</strong> Antropologia,podemos ouvir mitos e histórias muitas vezes fragmenta<strong>da</strong>s <strong>na</strong> memóriade anciãos e anciãs, chamados tios e tias, presentes em algumascomuni<strong>da</strong>des que insistem em manter uma espécie de pacto de silênciochamado segredo, a fim de proteger os conteúdos de sua religião. Estetema, nos últimos anos, entrou <strong>na</strong> pauta de alguns estudos que acabaramdesautorizando ou minimizando suas funções dentro do grupo religioso.O contato com estes tios e tias, como alguém inserido no contextoreligioso me permitiu reforçar a ideia de que, ao menos no mundo afro--brasileiro, nem tudo o que se fala corresponde ao que realmente é. Emoutras palavras, há uma espécie de faz de conta, utilizado muitas vezespara se livrar dos cientistas sociais. Mas o trabalho está aí. Ele, além detratar de assuntos específicos <strong>da</strong>s religiões de matriz africa<strong>na</strong> através debreves artigos, demonstra a capaci<strong>da</strong>de destas religiões de dialogar comquestões contemporâneas relacio<strong>na</strong><strong>da</strong>s à saúde, à nutrição, à tecnologia,à economia, à ética, à filosofia, e mesmo à própria ciência, aquela esboça<strong>da</strong>no século XIX que não foi capaz de reconhecer os múltiplos saberesafricanos.Assim, <strong>na</strong> ver<strong>da</strong>de, este trabalho é fruto de conversas e observações<strong>da</strong>s práticas cotidia<strong>na</strong>s de grupos sociais onde as palavras pronuncia<strong>da</strong>sde forma correta são vistas como principal elemento de transmissão doconhecimento e o meio mais eficaz de se restabelecer a ordem num mundoonde se entrelaçam elementos políticos, sociais, culturais, econômicose religiosos, como uma espécie de teia onde <strong>na</strong><strong>da</strong> acontece fora dessaideia de sistema. Ele é resultado <strong>da</strong> escuta atenta motiva<strong>da</strong>, às vezes, pelaqueixa, ou pela mágoa de um “velho” ou “velha” de ter sido constrangidopor ser negro, pobre e de candomblé, mas também <strong>da</strong> escuta de falasostensivas de um orgulho negro reconstruído <strong>na</strong> diáspora, como o relatoque ouvimos sobre a frase de uma sacerdotisa, filha de Yemanjá, MãePastora do tradicio<strong>na</strong>l terreiro do Bonocô, fun<strong>da</strong>do pela sua mãe consanguíneaem 1943, que fazia questão de lembrar: “Sou Alaketu, e Alaketu<strong>na</strong> <strong>palma</strong> <strong>da</strong> <strong>minha</strong> <strong>mão</strong> • 15
não dá para trás.” Ou do relato de histórias conta<strong>da</strong>s pela célebre GaiakuLuíza, que, do Alto <strong>da</strong> Leva<strong>da</strong>, um dos bairros <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Cachoeira,após duas horas de entrevista falando sem parar, nos afirmou: “A noitepode voltar por volta <strong>da</strong>s 5 horas <strong>da</strong> tarde. Esse horário não tem ninguémaqui. Fico aqui em cima sozinha e aí eu posso falar mais”. Foi dessa sacerdotisa,que faleceu com 96 anos de i<strong>da</strong>de, que ouvimos: “os vodus mu<strong>da</strong>mporque o mundo mudou.” A partir dessa fala começamos a pensar <strong>na</strong>dinâmica <strong>da</strong>s religiões de matriz africa<strong>na</strong>, no significado de seu diálogoe inserção no mundo moderno e contemporâneo como garantia de suaprópria continui<strong>da</strong>de, e, sobretudo, <strong>na</strong> consciência que as lideranças religiosas,ao menos as mais antigas que tivemos contato, tinham sobre isso.Consciência que não significa abrir <strong>mão</strong> dos conceitos ancestrais e nemdos procedimentos litúrgicos e ritualísticos.No decorrer desses anos tivemos acesso a histórias de tias descendentesde africanos que insistiam que algumas rezas e partes de rituaiscomplexos de sua religião fossem registrados em folhas de papel, posteriormenteorganiza<strong>da</strong>s em cadernos. Isso aju<strong>da</strong>-nos a demonstrar que, aocontrário do que se afirma, o registro nunca constitui problema para osafricanos e seus descendentes, afi<strong>na</strong>l eles próprios desenvolveram múltiplasformas de fazer isso, dentre elas o desenho. Assim, não poucas são asvezes que alguns desses tios ou tias pedem que se traga um papel, sobre oqual, com a aju<strong>da</strong> de um lápis, eles mesmos vão produzindo formas, oupedem que a pessoa que está diante dele o faça. Desta maneira, além dotexto escrito a partir <strong>da</strong>s falas, explicações e vivências que ouvimos, estelivro traz outro tipo de linguagem: a ilustração. Os desenhos abrem, assim,ao leitor um leque de possibili<strong>da</strong>des de interpretações, aju<strong>da</strong>ndo-oa entender o conteúdo do texto mesmo antes de uma leitura prelimi<strong>na</strong>ratravés de uma <strong>da</strong>s construções mais antigas que se tem notícia <strong>na</strong> história<strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de.É digno de nota que os primeiros grupos humanos acreditavam <strong>na</strong>possibili<strong>da</strong>de de encantar e trazer presente a caça lhe desenhando. Ideia16 • vilson caetano de sousa júnior
- Page 2 and 3: na palma da minha mão
- Page 4 and 5: VILSON CAETANO DE SOUSA JUNIORnapal
- Page 6: A nossos pais e mães de quem ouvim
- Page 9 and 10: 93 • Os gêmeos e a inversão da
- Page 11 and 12: to de terreiros como patrimônio ma
- Page 13 and 14: cultura afro-baiana com uma criaç
- Page 15: mãos que os iniciados trocam a bê
- Page 20 and 21: candomblé e modernidadeO tema “c
- Page 22: os terreiros, rios, uma língua rit
- Page 25 and 26: Fato é que para o chamado “povo
- Page 27 and 28: São, pois, estas memórias que con
- Page 30 and 31: a ciência e a tecnologia queos afr
- Page 32 and 33: do Dahomé, Abomé ou Danxomé, atu
- Page 34: eligiões de matriz africana, onde
- Page 40 and 41: que ignoram tal significado. Acredi
- Page 42 and 43: af r icanos ,seus descedentese econ
- Page 44 and 45: as doceiras “perderam o ponto”,
- Page 46 and 47: ancestralidadeafro-brasileiraO conc
- Page 48 and 49: uma parte do corpo, mas do corpo to
- Page 50: te, ou simplesmente balbuciadas no
- Page 54 and 55: candomblé e destino entrea advinha
- Page 56 and 57: com a morte, mas em viver a vida. Q
- Page 58 and 59: seres vivos, no sentido bem amplo d
- Page 60 and 61: em torno da noção de sacrifícion
- Page 62 and 63: Vamos agora falar sobre o sacrifíc
- Page 64 and 65: a expiatória. É quando a coisa sa
- Page 66:
esu .
- Page 69 and 70:
Diabo, entendido como adversário d
- Page 71 and 72:
ção do mal, sugerida pelos missio
- Page 74:
obaluaiyê
- Page 77 and 78:
portuguesa e mestiça. Isso fez com
- Page 79 and 80:
do aparelho urinário; Odé é resp
- Page 81 and 82:
extenso, tem forma, é visível a n
- Page 83 and 84:
primordial. Alguns orixás e nkise
- Page 86:
odé
- Page 89 and 90:
Médio e à Austrália. Depois fora
- Page 91 and 92:
(Artocarpus heterophyllus) chamada
- Page 94 and 95:
os gêmeos e a inversãoda mesaPara
- Page 96 and 97:
pois não libertava a sua mãe. O n
- Page 98:
Aos meninos é oferecida uma mesa,
- Page 101 and 102:
oportunidade de demonstrar a import
- Page 103 and 104:
cas, que construiu a sua família,
- Page 105 and 106:
mulheres que, desafiando o seu temp
- Page 108 and 109:
ao rei do mundo…Xangô é rei. É
- Page 110 and 111:
ele representou para a humanidade,
- Page 112:
oyá
- Page 115 and 116:
escuro deveria ser rasgado por uma
- Page 117 and 118:
çam graças à força emprestada p
- Page 120:
oxun
- Page 123 and 124:
O culto ao orixá Oxun, no Brasil,
- Page 126:
yemanjá
- Page 129 and 130:
santeiros. Como outros ancestrais n
- Page 131 and 132:
não pode ser encerrado na concepç
- Page 134 and 135:
iya agba yin,a mãe mais velhaDentr
- Page 136 and 137:
para Abeokuta, onde acreditava-se q
- Page 138:
quatro patas. Odé teria enlouqueci
- Page 142 and 143:
o ano bom para as religiõesde matr
- Page 144 and 145:
O Ciclo das Águas, especialmente n
- Page 146:
oxoguiã
- Page 149 and 150:
mais rápidos e o toque compassado
- Page 151 and 152:
consanguíneo de Tio Bangboxé, que
- Page 153 and 154:
da história das religiões de matr
- Page 155 and 156:
criar, reinventar e dar continuidad
- Page 158:
obá
- Page 161 and 162:
mesma, talvez por ela nos remeter a
- Page 163 and 164:
fender a sua dignidade através da
- Page 165 and 166:
______. Valores civilizatórios em
- Page 167:
Textos publicados no Jornal A TARDE