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Espaços e Paisagens. Vol. 1 - Universidade de Coimbra

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da solar aventura faetôntica. É bem verda<strong>de</strong>, há uma alusão anterior, mas<br />

única, en passant, e tratada como elemento da paisagem natural, ao citar como<br />

submersos pelo dilúvio, as “casas, cida<strong>de</strong>s, parques, bosques” 3 .<br />

Há, entretanto, nos primeiros versos, uma imagem a trair, em nossa opinião,<br />

nítida inspiração citadina: movido pela enormida<strong>de</strong> do sacrilégio do selvagem<br />

rei Licaão, Júpiter convoca todos os <strong>de</strong>uses para uma assembléia 4 , e essa vem<br />

a se reunir no Palatino, não no Olimpo, transmitindo-nos a idéia dos <strong>de</strong>uses<br />

viverem em uma Roma antes <strong>de</strong> Roma, pré-figuração da “capital do mundo”<br />

5 . E aqui se acha a gran<strong>de</strong> característica das cida<strong>de</strong>s em Metamorphoses: a sua<br />

afirmação política. A mais evi<strong>de</strong>nte marca das cida<strong>de</strong>s são os templos, apesar<br />

<strong>de</strong>las prescindirem e se acharem em qualquer sítio, onipresentes como um canto<br />

a pietas a ressoar por todo o poema. É fato, inexistem cida<strong>de</strong>s sem templos<br />

e muralhas e, por isso, colocadas sob o império da lei, fornecem proteção e<br />

segurança.<br />

Cida<strong>de</strong> e segurança, um binômio cuja pertinência para a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Roma,<br />

dado o seu <strong>de</strong>smesurado crescimento, vinha sendo posto em questão <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

os fins da República. Daí a evasão imagética para um campo cada vez mais<br />

idílico, do qual a já citada Arcádia vai se tornando a gran<strong>de</strong> expressão. Todavia<br />

o binômio faz morada renitente no imaginário mediterrânico. Assim, fora<br />

da “cida<strong>de</strong> murada <strong>de</strong> tijolos”, a Babilônia da rainha Semíramis 6 , dois jovens<br />

apaixonados, Píramo e Tisbe, se arriscam noturnamente em um encontro<br />

furtivo e acabam vítimas da instável mistura <strong>de</strong> seus temores além-muros mais<br />

audácia e enganos que se faz letal diante da chegada precoce e casual <strong>de</strong> uma<br />

leoa ao local marcado.<br />

Para além das florestas e campos, grutas e praias, Ovídio percorre também<br />

os céus e a intimida<strong>de</strong> do lar, imerge nos bosques e nas regiões infernais, tudo<br />

é cenário para as façanhas narradas. Nada ocorre, porém, nas praças e nas ruas,<br />

no espaço público da or<strong>de</strong>nada vida urbana. Quando essas são mencionadas o<br />

são enquanto lugares <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m, da afirmação do po<strong>de</strong>r e da soberania. Não há<br />

neles espaço para a <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m.<br />

A única exceção são os templos, o que é típico, pois sendo públicos e os mais<br />

privilegiados espaços da or<strong>de</strong>m, se revelam como os mais indicados espaços da<br />

contestação, alvos <strong>de</strong> personagens dominados por uma insana “<strong>de</strong>smedida”.<br />

Contudo, a pressurosa punição que se lhes acarreta tal atitu<strong>de</strong> não é, porém,<br />

concedida, no mesmo lugar do <strong>de</strong>safio. Quando Níobe, p. ex., <strong>de</strong>safia Latona,<br />

incendia gentis / in cinerem uertunt; (...)”.<br />

3 1.301-303: “Mirantur sub aqua lucos urbesque domosque / Nerei<strong>de</strong>s siluasque tenent <strong>de</strong>lphines<br />

et altis / incursant ramis agitataque robora pulsant”.<br />

4 1.164-167: “ingenit et, facto nondum uulgata recenti / Foeda Lycaoniae referens conuiuia mensae,<br />

/ ingentes animo et digna ioue concipit iras / Conciliumque uoct; tenuit mora nulla uocatos”.<br />

5 1.170-180: “Hac iter est superis ad magni tecta Tonantis / regalemque domum: <strong>de</strong>xtra laeuaque<br />

<strong>de</strong>orum / atria nobilium ualuis celebrantur apertis. / plebs habitat diuersa locis: hac parte potentes / caelicolae<br />

clarique suos posuere penates; / hic locus est, quem, siu uerbis audacia <strong>de</strong>tur, / haud timeam magni<br />

dixisse Palatia caeli. / Ergo ubi marmoreo superi se<strong>de</strong>re recessu, / celsior ipse loco sceptroque innixus eburno<br />

/ terrificam capitis concussit terque quaterque / caesariem, cum qua terram, mare, si<strong>de</strong>ra mouit”.<br />

6 4.57b-58: “(...) ubi dicitur altam / coctilibus muris cinxisse Semiramis urbem”.<br />

170<br />

Manuel Rolph De Viveiros Cabeceiras

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