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navio. Parou de subir até as lâmpadas do teto, mais por tédio, acredito, que por<br />

necessidade física. Não podia suportar contatos bruscos, mas adorava um toque delicado<br />

como o do homem sem teto que se tornou um de seus melhores amigos. Ê difícil ser<br />

invisível em uma cidade como Spencer, porém esse homem quase conseguiu. Ele<br />

aparecia na biblioteca todos os dias, com barba por fazer, despenteado e sem ter se<br />

lavado. Nunca disse uma palavra a ninguém. Nunca olhou para ninguém. Só queria<br />

Dewey. Ele pegava o gato e o envolvia em torno dos ombros. E Dew ficava ali, deitado<br />

e ronronando, durante vinte minutos, enquanto o homem desabafava seus segredos.<br />

Quando Dewey desistiu de caminhar por cima das prateleiras presas à parede,<br />

Kay pegou a velha cama do gato dela e a colocou sobre os escaninhos de sua<br />

escrivaninha. Dewey se aninhava naquela cama e espiava Kay trabalhar. Ela era atenta<br />

às necessidades de Dew: trocar a comida, escovar os pêlos emaranhados, dar a ele<br />

vaselina para as bolas de pêlo, ajudar-me com o banho dele. Kay não era tão paciente ou<br />

gentil como eu, mas mesmo seu contato mais brusco terminava com um momento de<br />

ternura e uma carícia na cabeça. Um dia, não muito depois de Kay ter ajeitado esse novo<br />

arranjo, Dewey pulou para a cama e a prateleira desabou. O gato voou para um lado,<br />

abanando as patas. Blocos de notas e clipes voaram para o outro. Antes de o último<br />

clipe ter tocado o chão, Dew estava de volta para examinar os danos.<br />

"Não tem medo de muita coisa nesta biblioteca, não é?", brincou Kay, com um<br />

sorriso que encurvava os cantos da boca e que eu sabia ir até o coração dela.<br />

Só da escova e do banho, teria dito Dewey, se estivesse sendo honesto. Quanto<br />

mais velho ele ficava, mais detestava ser objeto de cuidado.<br />

Também já não tinha tanta paciência com as crianças da pré-escola, que tendiam<br />

a cutucá-lo e puxá-lo. Estava endurecendo e já não conseguia tolerar as pequenas<br />

batidas e machucados. Nunca atacou nenhuma criança e raramente fugia delas.<br />

Simplesmente começou a sumir em um estalar de dedos e se esconder quando<br />

determinadas crianças vinham procurá-lo, evitando uma situação antes que acontecesse.<br />

Com os bebês era diferente. Um dia vi Dewey pular a poucos passos de uma<br />

bebezinha que estava no chão, em uma cadeirinha. Como durante anos nunca o tinha<br />

visto interagir com bebês, fiquei um tanto apreensiva. Bebês são delicados, mas as mães<br />

novatas eram ainda mais. Dew ficou apenas ali, sentado, com expressão entediada,<br />

olhando ao longe, como se dissesse: Estava passando - por acaso. Aí, quando achou<br />

que eu não estava olhando, moveu-se alguns centímetros para mais perto. Apenas<br />

ajustando minha posição, dizia sua linguagem corporal, nada demais. Um minuto<br />

depois, fez a mesma coisa. E de novo. Vagarosamente, centímetro a centímetro,<br />

insinuou-se para mais perto, até se espremer diretamente contra a cadeirinha. A cabeça<br />

dele apareceu subitamente por cima da beirada, como para confirmar que a criança<br />

ainda estava lá dentro, e depois acomodou a cabeça sobre as patas. A bebê estendeu a<br />

mãozinha por cima da beirada e agarrou-lhe a orelha. Dewey ajustou a cabeça para que<br />

ela conseguisse pegar melhor. Ela ria, sacudindo as perninhas e espremendo a orelha<br />

dele. Dewey ficou quietinho, com um ar satisfeito.<br />

Contratamos uma nova bibliotecária assistente para as crianças, Donna Stanford,<br />

em 2002. Donna andara pelo mundo como recrutadora da organização governamental<br />

Peace Corps e recentemente voltara para o noroeste de Iowa a fim de cuidar da mãe, que<br />

sofria da doença de Alzheimer. Donna era quieta e conscienciosa e, no início, achei que<br />

era por isso que Dew passava algumas horas com ela, todos os dias, na seção das<br />

crianças. Levei muito tempo para me dar conta de que Donna não conhecia mais<br />

ninguém na cidade, além da mãe, e que até um lugar como Spencer — ou especialmente<br />

num lugar muito fechado como Spencer — poderia parecer frio e intimidador para uma<br />

pessoa de fora. O único residente local que se aproximava de Donna era Dewey, que

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