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Eu disse a Jodi quando Dewey estava com catorze anos: "Não sei se vou querer<br />
continuar trabalhando na biblioteca depois que Dewey se for". Era apenas uma<br />
premonição, porém agora compreendo o que eu queria dizer. Desde que me lembro,<br />
sempre que eu chegava, a biblioteca estava viva: com esperança e amor, Dewey acenava<br />
para mim da porta da frente. Agora, voltou a ser um prédio morto. Sinto um gelo nos<br />
ossos, mesmo no verão. Certas manhãs, não quero nem me importar. Então acendo as<br />
luzes, e a biblioteca volta à vida. Os funcionários começam a chegar. Os usuários os<br />
seguem: os de meia-idade vêm pelos livros; os homens de negócios, pelas revistas; os<br />
adolescentes, pelos computadores; as crianças, pelas histórias; os idosos, pelo apoio. A<br />
biblioteca está viva e mais uma vez tenho o melhor emprego do mundo, pelo menos até<br />
a hora de ir embora, no final do dia, e ninguém mais pedir um jogo de esconde-esconde.<br />
Um ano depois da morte de Dewey, minha saúde finalmente me pegou. Eu sabia<br />
que era a hora de seguir em frente com minha vida. A biblioteca estava diferente sem<br />
Dew e eu não queria terminar meus dias daquele jeito: vazia, silenciosa, ocasionalmente<br />
solitária. Quando eu via passar o carrinho com os livros, aquele em que Dew gostava de<br />
passear, meu coração partia. Sentia tanta falta dele, e não apenas de vez em quando na<br />
biblioteca, mas todos os dias.' Mais de cento e vinte e cinco pessoas compareceram à<br />
minha festa de aposentadoria, inclusive muita gente de fora da cidade com quem eu não<br />
falava há anos. Papai leu um de seus poemas; meus netos sentaram a meu lado para<br />
cumprimentar os presentes; foram publicados dois artigos no Spencer Daily Reporter<br />
agradecendo-me pelos vinte e cinco anos de serviço. Do mesmo jeito que Dewey, eu<br />
tinha sorte. Consegui sair da minha própria maneira.<br />
Encontre seu lugar. Seja feliz com o que tem. Trate bem todo mundo. Viva uma<br />
boa vida. Não estou falando de coisas materiais — estou falando de amor. E não dá para<br />
prever o amor.<br />
Aprendi essas coisas com Dewey, é claro, mas, como sempre, tais respostas<br />
parecem fáceis demais. Todas as respostas — com exceção de que amei Dewey com<br />
todo o coração e ele me amou da mesma forma — parecem fáceis demais. Porém vou<br />
tentar.<br />
Quando eu estava com três anos, papai tinha um trator John Deere. Aquela<br />
máquina tinha uma roçadeira na frente, uma longa fileira de lâminas que pareciam pás,<br />
seis de cada lado. As pás ficavam erguidas alguns centímetros acima da terra e era<br />
preciso empurrar a alavanca para frente para colocá-las no chão. Então elas cortavam o<br />
solo, jogando terra fresca nos canteiros de milho. Um dia, eu estava brincando na lama<br />
em frente à roda daquele trator, quando o irmão de mamãe saiu, depois do almoço,<br />
engatou a marcha e começou a dirigir a máquina. Papai viu o que estava acontecendo e<br />
começou a correr. Meu tio não escutava os gritos dele. A roda me jogou no chão e me<br />
empurrou para as lâminas. Fui empurrada por elas, passei de uma à outra, até que o<br />
irmão de mamãe girou a roda e a lâmina de dentro me jogou pela calha do meio e me<br />
deixou de cara para o chão atrás do trator. Papai me pegou, num só movimento, e correu<br />
comigo de volta para a varanda. Ele me examinou com assombro e me manteve no colo<br />
o resto do dia, balançando-me para frente e para trás em nossa velha cadeira de balanço,<br />
chorando em meu ombro e me dizendo: "Você está bem, você está bem, está tudo<br />
bem...".<br />
Por fim, olhei para ele e disse: "Cortei o dedo". Mostrei o sangue. Eu estava<br />
machucada, mas, fora isso, aquele corte minúsculo foi minha única marca.<br />
A vida é assim. Todos de vez em quando passamos pelas lâminas do trator.<br />
Todos ficamos machucados e nos cortamos. Algumas vezes, as lâminas cortam fundo.<br />
Os que têm sorte saem com alguns arranhões, um pouco de sangue, contudo isso não é o