O jornalismo em O tempo eo vento
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A redação e as oficinas de O Arauto ficavam numa meia-água quase <strong>em</strong> ruínas,<br />
apertada entre o Paço Municipal e o casarão dos Amarais. Toda a gente <strong>em</strong> Santa Fé<br />
sabia que o jornal dirigido por Manfredo Fraga se mantinha graças ao apoio<br />
financeiro que lhe dava o Cel. Bento, o qual da janela lateral de sua residência<br />
costumava berrar sugestões para os artigos de fundo: “Ataque esses republicanos<br />
duma figa. Diga que são uma corja de traidores!” Ou então: “Responda ao artigo de<br />
Júlio de Castilhos e conte que A Federação é financiada pela Maçonaria”. Ou ainda:<br />
“Ameace que vamos contar donde saiu o dinheiro pra construir o sobrado dum certo<br />
republicano de Santa Fé. Dê a entender que vamos desenterrar cadáveres, e que<br />
muita roupa suja vai ser levada <strong>em</strong> praça pública!” (O CONTINENTE II, p.<br />
559) 50<br />
Manfredo Fraga representa na trama o papel do redator humilhado pelas condições<br />
de trabalho. Submisso aos mandos do chefe político liberal de Santa Fé, o redator e diretor de<br />
O Arauto apenas faz aquilo que sabe fazer, escrever artigos. O narrador não esclarece as<br />
origens de Manfredo Fraga, apenas que era “meio surdo” e era tratado por “salafrário” pelo<br />
coronel. Apesar do autor não deixar claro, o motivo que leva o redator a aceitar o trabalho<br />
propagandista parece muito mais ligado a uma questão de sobrevivência financeira do que<br />
simples simpatia com as idéias liberais. Quando recebia uma ord<strong>em</strong>, escutava “num silêncio<br />
servil e depois ia sentar-se à mesa de trabalho, molhava a pena na tinta e com caligrafia<br />
caprichada traçava o artigo de fundo, de acordo com as instruções do Chefe. Nunca publicava<br />
nada <strong>em</strong> seu jornal s<strong>em</strong> primeiro pedir a aprovação do Cel. Bento”. Na fria manhã do dia 23<br />
de junho de 1884 Manfredo Fraga escreve aquele que ele considera o seu principal artigo<br />
desde que assumira a diretoria do s<strong>em</strong>anário. Trata-se da elevação de Santa Fé à categoria de<br />
cidade e dos festejos programados para com<strong>em</strong>orar o grande feito. Para espantar o frio, o<br />
redator t<strong>em</strong> a seus pés uma garrafa de cachaça, da qual vez ou outra toma largos sorvos para<br />
<strong>em</strong> seguida limpar os beiços com a manga do casaco e continuar a escrita.<br />
[...] Manfredo Fraga terminava de revisar o editorial que devia aparecer no<br />
número do dia seguinte. Sentado junto da escrivaninha, metido num largo poncho<br />
cor de chumbo, do qual sobressaía seu pescoço descarnado e cheio de pregas, a<br />
sustentar precariamente a cabeça oval, de rosto rosado e glabro, o diretor de O<br />
Arauto parecia uma enorme tartaruga. Acariciando o lóbulo da orelha direita com a<br />
ponta da caneta, os óculos acavalados no nariz adunco, os lábios a se mover<strong>em</strong><br />
silenciosamente. (p. 559)<br />
Nas poucas vezes <strong>em</strong> que Manfredo Fraga aparece na trama, o narrador reforça as<br />
características que deixam transparecer um personag<strong>em</strong> ridículo, muito mais que apenas<br />
subserviente. Apesar da posição humilhante de dirigir um jornal financiado, ele toma partido<br />
50 Para melhor fluência do texto, as próximas citações, correspondentes ao ano de 1884 na história narrada, serão<br />
indicadas apelas pelo número da página.<br />
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