Prosa - Academia Brasileira de Letras
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Ronaldo Costa Fernan<strong>de</strong>s<br />
época – segunda meta<strong>de</strong> do século XIX – que se apresentava como vanguarda,<br />
o realismo, já foi dito, sempre existiu na literatura – do mesmo modo que o<br />
fantástico – e não <strong>de</strong>saparecerá.<br />
Certo <strong>de</strong> que não queria fazer um romance <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia, mais apropriado<br />
para os anos 70 do século passado, em plena luta e dura repressão, também<br />
não queria que meus personagens vagassem numa repressão mais perversa: a<br />
da estética, ou seja, que se expressassem <strong>de</strong> maneira absolutamente realista.<br />
Escrevo absolutamente porque o romance Um homem é muito pouco é realista.<br />
Realista à sua maneira.<br />
Um homem é muito pouco está dividido em quatro gran<strong>de</strong>s partes. Cada parte<br />
traz um protagonista e um personagem os une. Duas partes são narradas em<br />
primeira pessoa e as outras duas em terceira pessoa. O número quatro já me<br />
fascinara antes. Num romance anterior, <strong>de</strong> 1997, Concerto para flauta e martelo,<br />
já usara as mesmas quatro vozes, mas numa dinâmica e disposição até mesmo<br />
tipográfica diferentes. O romance tem prepon<strong>de</strong>rantemente como cenário<br />
também quatro espaços urbanos: Praça XI, Copacabana, Grajaú e Ipanema.<br />
A época: os anos 70.<br />
Moveu- me também a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que <strong>de</strong>veria criar um gran<strong>de</strong> painel. Se<br />
logrei, não sei. Ambicionei personagens <strong>de</strong> várias gerações, em conflitos<br />
constantes e <strong>de</strong>ambulando em meio a uma psicologia a<strong>de</strong>nsada, mas sem<br />
que fosse o foco primordial. O embate entre a individualida<strong>de</strong> e a amplitu<strong>de</strong><br />
do social agindo sobre comportamentos e atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> pessoas que não<br />
estavam engajadas em movimento político também me atraía. Havia uma<br />
atmosfera <strong>de</strong> medo e apreensão, <strong>de</strong> silêncio e reserva, mesmo entre aqueles<br />
que não queriam “envolver- se em política”. Mesmo entre os chamados alienados,<br />
tinha- se a certeza <strong>de</strong> que a ativida<strong>de</strong> política só <strong>de</strong>veria ser inócua se<br />
fosse a favor do governo e que a participação em algum movimento social<br />
representava risco <strong>de</strong> morte.<br />
É <strong>de</strong>sconcertante ver que, como num processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>svelamento, algumas<br />
i<strong>de</strong>ias emergiram <strong>de</strong> um recanto obscuro que insidiosamente insistem<br />
em metamoforsear- se em personagem, cena, psicologia ou até mesmo trama<br />
que antes <strong>de</strong>sconhecíamos albergar <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nós. Há personagens que se<br />
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