Prosa - Academia Brasileira de Letras
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Ronaldo Costa Fernan<strong>de</strong>s<br />
tramas e personagens lhe atraíram pelo mesmo processo dos instintivos. Ora,<br />
se García Marquez observa que Cem anos <strong>de</strong> solidão é a história dos pais e que<br />
O amor no tempo do cólera é a história <strong>de</strong> amor dos avós, nada se modifica, pois<br />
se foi seduzido pelo tema é porque significativamente ele aponta para mecanismos<br />
psíquicos que operam no processo ficcional vindo <strong>de</strong> <strong>de</strong>svios, vícios,<br />
ansieda<strong>de</strong>s, traumas, angústias e outras sensações e sintomas psicológicos que<br />
foram reprimidos ou <strong>de</strong>slocados.<br />
O Capitão Vaz, embora presente em todos os episódios, é um personagem<br />
secundaríssimo. Fascina- me mais a distorcida realida<strong>de</strong> do cozinheiro <strong>de</strong> marinha<br />
Clemente que <strong>de</strong>scobre estar embarcado num barco bem maior que os<br />
navios em que se enfurnou: o barco da vida. Ou me atraiu a mania persecutória<br />
do personagem Pedro, da segunda parte, que não se sabe se realmente<br />
é perseguido ou é apenas fruto <strong>de</strong> sua paranoia, sua relação com o angolano<br />
dono <strong>de</strong> bar que assassinou em Luanda sua mucama e seu relacionamento<br />
conflituoso e existencial com a poeta Alice. Seduziu- me também criar uma família<br />
<strong>de</strong> relojoeiros, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o avô até o neto, já não exercendo a profissão, mais<br />
vivendo o mundo mo<strong>de</strong>rno do rock. E por fim a vizinhança traumatizada, o<br />
casal que recebe as starlets do cinema novo, o jornalista que vê no restaurante<br />
o seu algoz, o síndico que se imola em nome <strong>de</strong> um amor <strong>de</strong>sastroso e o primo<br />
do narrador que vive numa doce prisão na casa <strong>de</strong> dois solteirões que o<br />
acolhem como quem exercita um hobby.<br />
O <strong>de</strong>ambular dos personagens também po<strong>de</strong> ser citado como uma característica<br />
buscada no romance. Nisso me perseguia a frase <strong>de</strong> Shakespeare que<br />
Faulkner usou <strong>de</strong> epígrafe para O som e a fúria: “Life is a story told by a clown, full<br />
of sound and fury, means nothing.” Esta frase sempre me impressionou. Como era<br />
possível que a vida não tivesse sentido? Talvez o ato <strong>de</strong> escrever viesse justamente<br />
para dar sentido à minha vida. Lembro que no colégio fiz uma peça<br />
<strong>de</strong> teatro, fui ator apagado, mas aquela era primeira manifestação <strong>de</strong> que algo<br />
na vida me <strong>de</strong>sagradava e po<strong>de</strong>r suportá- la representava buscar uma maneira<br />
<strong>de</strong> mostrar meu incômodo <strong>de</strong> estar no mundo. Os personagens <strong>de</strong> Um homem<br />
é muito pouco parecem também buscar, em sua ânsia ambulatória, um sentido<br />
no romance.<br />
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