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luzcâmeraação FOTOS ART FILMS Ciao, Marcello! Documentário traz de volta o inigualável Mastroianni, ator-personagem que dominou a cena do cinema europeu e mundial no segundo pós-guerra POR SÉRGIO MORICONI Para quem acompanhou os passos de Marcello Mastroianni em inesquecíveis obras-primas de Fellini, De Sica, Scola e tantos outros, Marcello, Uma Vida Doce é um regalo. Não é a primeira vez que a estrela do filme que projetou o grande ator italiano no cenário internacional, e ao qual os diretores Mario Canale e Annarosa Morri se referem no título de seu documentário, ganha de presente um longa-metragem só para si. Há quase uma década, em 1997, Anna Maria Tatò dirigiu e montou Marcello Mastroianni – Mi Ricordo, Si, Io Mi Ricordo, filme exibido algumas vezes em sessões especiais em Brasília. As duas obras se complementam divinamente, deixando evidente certas características indefectíveis de Mastroianni, especialmente sua doçura, delicadeza e também sua lendária indolência. A propalada preguiça de Mastroianni não deixa de ser um desafio para aqueles que se dispõem a desvendar os segredos de uma alma que participou de nada menos que 150 filmes entre as décadas de 50 e 90. Sim, 150 filmes, entre eles 46
uma quantidade enorme de obras de qualidade superior. Um dos grandes trunfos de Marcello, Uma Vida Doce são os registros realizados por Antonello Branca, ainda em 1965, com o próprio ator, com alguns dos principais diretores com quem trabalhou – como Luchino Visconti, Mario Monicelli etc –, que Canale e Morri incorporam ao seu documentário, registros esses enriquecidos com entrevistas recentes com outros tantos diretores mais jovens, como Ettore Scola e Liana Cavani, com as filhas do ator, Bárbara e Chiara, e com as colegas divas, as italianas Sophia Loren, Claudia Cardinale e a francesa Anouk Aimée. PARA MUITOS FÃS, Marcello, Uma Vida Doce deixa um certo gostinho melancólico e a certeza de que o mundo está irremediavelmente mudado, muito provavelmente para pior. Com Mastroianni morreu uma época, um modo de ver a vida. Morreu um espírito diletante, incompatível com o pragmatismo dos dias de hoje. Há cenas e depoimentos deliciosos que revelam o abismo que separa esses dois mundos e a curiosa personalidade do ator. Sua mania por telefones, sapatos, suas pequenas mentiras, sua relação telepática com Fellini. Anouk Aimée fala com incredulidade do método com que os dois trabalhavam. Como é sabido, Fellini não escrevia roteiros. Fazia uns rabiscos num papel e antes de cada cena reunia os atores pra explicar mais ou menos o que queria. Criava-se sempre um certo pânico, com todos solicitando maiores detalhes sobre o que deveriam fazer. Aimée testemunhou a paciência de Fellini, repetindo tantas vezes quanto necessário suas intenções. Ele sempre se dirigia para cada um dos atores e atrizes perguntando se haviam compreendido tudo. Quando chegava a vez de Mastroianni, ele dizia: “Marcelino, você não precisa, você já sabe”. Para Fellini e Mastroianni, o cinema não era um trabalho, era uma diversão – “profissões são advogado, médico. Ator de cinema é uma... ventarola”, conclui Mastroianni, com um sorriso infantil no rosto. Era uma oportunidade para rever os amigos, fazer as mesmas brincadeiras de sempre, como fazem os adolescentes nos tempos de escola. Experiência semelhante foi relatada por muitos personagens importantes da grande época do cinema italiano do pós-guerra. Diretores, atores e técnicos apenas compartilhavam uma mesma experiência de vida. A advogada do ator conta com humor e admiração a forma como ele negociava seus contratos. Apesar de ter sido durante muito tempo a personalidade mais bem paga do cinema europeu, Mastroianni nunca demonstrava interesse pelo cachê. Tinha preocupação com as diárias. Elas chegavam a atingir cifras estratosféricas, porque só assim podia convidar toda a equipe para almoçar nos restaurantes que serviam seus pratos preferidos. A comida era algo muito importante para Mastroianni. O documentário narra o prosaico episódio em que ele, numa de suas primeiras filmagens com Catherine Deneuve, com quem teria sua filha Chiara, viaja de Roma para Paris levando no colo uma marmitinha de macarrão com feijão coberta com um pano, para que a atriz pudesse experimentar seu prato preferido feito com carinho pela própria mãe. Muitos continuam se perguntando sobre qual seria o segredo do carisma irresistível de Mastroianni. Ao contrário de muitos “divos” de todas as épocas do cinema, ele era de fato um ator admirável. Sua formação se solidificou aos poucos, logo depois da guerra, a partir do momento em que ingressou na companhia teatral dirigida por Luchino Visconti. Ali desempenhou Mitch, de Um Bonde Chamado Desejo, e papéis importantes nas peças Três Irmãs e Tio Vânia, de Tchekov. O cinema passou a vê-lo com interesse depois de Noites Brancas, dirigido pelo mesmo Visconti, em 1957, e com muito mais interesse ainda quando faz o marido impotente em O Belo Antonio, de Mauro Bolognini. Antes disso, havia feito dezenas de papéis menores em filmes de diretores importantes, como De Santis e Monicelli; porém, suas personagens se aproximavam sempre de uma tipologia rude e suburbana. COM A DOCE VIDA, de Fellini, surge a persona do “latin lover” de olhar melancólico. Dizem que o segredo de Mastroiani estava na melancolia suave que irradiava, não importa que papel desempenhasse. Essa melancolia doce está presente em filmes tão diversos quanto Casanova e a Revolução, Macaroni e Um Dia Muito Especial, todos três de Ettore Scola, o realizador que mais trabalhou com o ator. Ainda segundo muitos, essa melancolia é que fazia com que o ator fosse o preferido de dez entre dez mulheres, todas desejosas de protegêlo com um certo amor maternal não de todo destituído de carga erótica. Mas existem as exceções de sempre. Também um símbolo sexual dos anos 50, 60 e 70, a atriz Claudia Cardinale confessa nunca ter retribuído a forte atração que sabia Mastroiani sentir por ela. Aliás, ela não lhe dava a menor bola. A diretora Liana Cavani relata um pitoresco episódio envolvendo os dois num de seus filmes: ao saber que o roteiro indicava uma ardente cena de amor entre seu personagem e o de Cardinale, Mastroianni pede à diretora que repita a cena várias vezes, sob o pretexto de que o desempenho de ambos não estava de todo bom. E Cavani aceita os caprichos do ator, que nunca teria um verdadeiro caso de amor com Cardinale. Tímido, introspectivo e reservado, Mastroianni detestava o status de celebridade. Achava fundamental que a imprensa deixasse espaço para que ele pudesse ser ele mesmo e não um mito fabricado. Ao mesmo tempo, foi um dos poucos atores que conseguiu a mágica de revelar um pouco de sua admirável figura humana através de personagens que pouco ou nada tinham a ver com ele próprio. Marcello, Uma Vida Doce Itália/2006, 98 min. Direção: Annarosa Morri e Mario Canale. Elenco: Marcello Mastroianni, Federico Fellini, Luchino Visconti, Sofia Loren, Claudia Cardinale, Anouk Aimee, Valerio Zurlini, Pietro Germi, Phillipe Noiret, Ettore Scolla, Virna Lisi. 47
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