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Podemos encontrar na cultura e literatura ocidentais<br />
narrativas que sejam equivalentes às narrativas<br />
do western?<br />
A Odisseia [atribuída a homero] não é<br />
propriamente um western, mas Ulisses<br />
é submetido a uma série de provas, com<br />
um conteúdo iniciático, é alguém que<br />
também vai atravessar e vencer uma série<br />
de obstáculos no Mar – que é uma metáfora<br />
da existência, uma substância imprevisível,<br />
na qual os homens estão sempre<br />
em perigo de naufragar. É exactamente<br />
o mesmo esquema da mitologia americana.<br />
Nela, os heróis lançam-se em perigos<br />
diversos, sempre com a ideia de<br />
chegarem a um espaço mítico onde se<br />
encontra uma espécie de paz, a Terra<br />
Prometida. Nos nossos clássicos, o herói<br />
também procura chegar a um lugar específico,<br />
no caso de Ulisses é a casa. Mas o<br />
problema de Ulisses é que ele não queria<br />
muito regressar a casa.<br />
o que distingue a mitologia americana<br />
em relação a qualquer mitologia ocidental<br />
é que nela há um fundo de optimismo<br />
superior. A mitologia americana nasceu<br />
de um sonho, de gente que encontrou<br />
qualquer coisa que alegoricamente era o<br />
Paraíso, era o que o Colombo procurava.<br />
Mas que ele se encarregou de destruir rapidamente.<br />
Sim, mas essa ideia ficou. Toda a mitologia<br />
americana está ligada à ideia de que<br />
aquela é a Terra da Liberdade. onde cada<br />
um, na medida do possível, é capaz de<br />
concretizar os seus sonhos até ao fim. E,<br />
sobretudo, ser ele mesmo, ser responsável<br />
pela sua vida. os Estados Unidos herdaram<br />
essa pulsão messiânica que vem do texto<br />
bíblico, que se tornou o texto cultural por<br />
excelência dos colonos e depois da maioria<br />
dos americanos. É muito interessante<br />
verificar que logo nos primeiros anos do<br />
século XX, toda essa gente que tem um<br />
papel importante na criação do cinema<br />
americano, na altura o espectáculo mais<br />
popular do mundo, são judeus. Não só os<br />
proprietários das majors, por exemplo,<br />
Warner, Mayor e Goldwyn, mas também<br />
os realizadores como [Josef von] Sternberg<br />
ou grandes actores como Chaplin.<br />
Acha possível o regresso dos cowboys?<br />
Se os cowboys são essa espécie de anjos<br />
cinematográficos que incarnam os valores<br />
mais preciosos na tradição ocidental,<br />
enquanto restauradores da justiça, esperemos<br />
que haja sempre cowboys! o problema<br />
é se a América se institui cowboy para<br />
fazer reinar a justiça no mundo inteiro<br />
– nessa altura, contraria o ideal de liberdade<br />
que defende e torna-se anticowboy.<br />
CuLturA<br />
Uma coisa é querer que todos os povos<br />
do mundo sejam cada vez mais democráticos,<br />
outra coisa é impor a democracia à<br />
força, através da violência e, sobretudo,<br />
uma violência absolutamente desproporcionada.<br />
Quando os Estados Unidos vieram<br />
salvar a Europa da ameaça hitleriana,<br />
quando durante vários anos enfrentaram<br />
a ameaça soviética, confrontavam forças<br />
iguais; agora, mobilizar as armas mais<br />
sofisticadas do mundo para pôr na ordem<br />
um país de décima quinta categoria isso<br />
é o cúmulo da violência e da injustiça.<br />
[No 11 de Setembro] os Estados Unidos<br />
foram atacados pela primeira vez no seu<br />
solo, mas atacados por quem? Por nenhum<br />
Estado. Punir o mundo inteiro porque uma<br />
espécie de loucos decidiu castigar os<br />
Estados Unidos pelos seus pecados, significa<br />
entrar já não num western mas num<br />
género dramático e eticamente pouco<br />
aceitável.<br />
“uma coisa é querer que todos os povos do mundo sejam cada vez mais democráticos,<br />
outra coisa é impor a democracia à força.”<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 49