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Aventuras<br />
de Um Nabogador<br />
onésimo teotónio Almeida<br />
2007, Lisboa: Bertrand<br />
Contares<br />
do andarilho<br />
POR FrAnCisCo beLArD<br />
Jornalista freelance<br />
Navegar é preciso, viver idem, podia dizer<br />
o autor de Aventuras de Um Nabogador & Outras<br />
Estórias-em-Sanduíche, ou desventuras de um<br />
navegador. A dupla qualidade do narrador<br />
– autor e protagonista – marca as<br />
histórias ou “estórias”, “ensanduichadas<br />
em crónicas”. Português nos EUA, a dupla<br />
pertença terá marcado a predilecção por<br />
um termo que aspira a demarcar story de<br />
history e trocar “conto” por short story<br />
(mesmo short é mais ampla semanticamente),<br />
contornando na volta a questão da<br />
“história” com e sem maiúscula. Este viajante,<br />
não turista, dado a recriar mas não<br />
a mentir, narra episódios que viveu ou lhe<br />
foram contados, que assim aconteceram<br />
ou podiam acontecer. onésimo é um dos<br />
nossos melhores navegantes em fim de<br />
século ou começo de outro. Faz-se ao mar<br />
de avião, e, se tal não ocorre, mete água<br />
metafórica, como no episódio que<br />
encerrao livro e lhe dá título. Neste livro<br />
reitera o jeito raro de contar acontecimentos<br />
(reais, passe a redundância) e efabular<br />
em torno. A realidade irrompe tão rica,<br />
interessante e até prodigiosa que dispensa<br />
ficções propriamente mentidas.<br />
o escrúpulo dissuade-o de ser ficcionista,<br />
não lhe faltando experiências e arte que<br />
dele fariam “escritor” na acepção de<br />
matriz continental. Detecta-se na sua “poética”<br />
uma indecisão central entre ficção e<br />
registo (como cronista, testemunha, repórter<br />
ou revelador de indiscrições); talvez<br />
viesse ao caso discutir a natureza dos seus<br />
Livros<br />
textos não académicos a partir do conceito<br />
de paralaxe, ou parallax view, mas não<br />
serei eu a fazê-lo. Este homem, que<br />
defronta certezas infundadas do establishment<br />
intelectual e moral, que é atrevido a<br />
contar histórias reais e fictícias, poupa-se<br />
ao salto não mortal para a ficção “pura”<br />
que eliminaria problemas. Pairam sobre<br />
as andanças de onésimo a exposição ao<br />
olhar próximo (mãe, mulher, conhecidos,<br />
pudor na linguagem e em identificar pessoas;<br />
“excesso de pruridos”, “frágil vergar<br />
aos conselhos da minha primeira leitora”)<br />
e o medo de nos maçar, tão consentido<br />
que talvez lhe corte asas para voos de outra<br />
ordem. Sente-se a tensão fecunda entre<br />
olhar nativo e olhar estranho. É neste olhar<br />
movente que a sua perspicácia tão fundamente<br />
assenta, esteja aqui ou ali, observando<br />
todos como outros e, ao mesmo<br />
tempo, nossos. São textos que a voz do<br />
narrador torna homogéneos, em livro<br />
capaz de dispensar o itálico como separador<br />
entre “estórias”. Nuns casos, estas<br />
seriam fragmentos ou esboços de uma<br />
campus novel (e onésimo o nosso David<br />
Lodge), noutros, a literatura de viagens e<br />
a narrativa cómico-marítima que nos faltaram<br />
na viragem do século. Ao mesmo<br />
tempo, em digressão pelos espaços, ele<br />
condensa as expressões de mundos atlânticos<br />
e pacíficos, com as virtualidades da<br />
perspectiva luso-americana e da mundividência<br />
universalista. A sensibilidade às<br />
tragédias do povo de origem é patente,<br />
sem proclamações patéticas. Se a isto juntarmos<br />
o humor (subtil, subliminar ou de<br />
understatement nuns casos, aberto e descarado<br />
noutros), encontramos um escritor só<br />
tolhido por modéstia e autodepreciação<br />
(ficam-lhe bem, de resto), de que se evade<br />
em invenção vocabular e recursos estilísticos.<br />
onésimo é o bom contrabandista<br />
de géneros literários, que o seu talento<br />
guarda em gaveta indefinível de material<br />
confessável e inconfessável, contável e<br />
incontável. Na sua escrita vigiada, evita<br />
ser mais um romancista português. Toma<br />
diversas vozes; a pessoal, de actor e testemunha,<br />
e as que ecoam no poder de<br />
observador e contador, conjugando peças<br />
de descolagem variável em relação ao “que<br />
realmente aconteceu” (Ranke), acenando<br />
‘ onésimo é o bom contrabandista<br />
de géneros literários, que<br />
o seu talento guarda em gaveta<br />
indefinível de material confessável<br />
e inconfessável, contável<br />
e incontável.<br />
’<br />
ao que podia ter acontecido. Um universo<br />
sedutor, verdadeiro mesmo quando<br />
inverosímil (é também isso a realidade),<br />
marginal ao emprego deste investigador<br />
e professor, que escapa a ossos mais sisudos<br />
do ofício para dar o humor com que<br />
sobrevoa os oceanos e aterra em terras<br />
novamente descobertas. Essa harmonia<br />
polifónica não é manto fantasioso sobre<br />
a verdade nua; é desvio subtil entre nós e<br />
a crueza do mundo interpretado.<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 59