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bLoCo De notAs<br />
A terceira margem do rio<br />
‘ As três candidaturas, ainda em disputa, situam-se<br />
fora dos binómios que moldam a cultura americana.<br />
“o (número) três – escreve Damatta – é a sábia<br />
e sempre próxima (mas invisível e paradoxal) terceira<br />
margem do rio”.<br />
’<br />
“Se na sociedade brasileira as relações<br />
entre as pessoas obrigam a mentir e calcular<br />
constantemente quem nos deve e a<br />
quem devemos, aqui, nos Estados Unidos,<br />
o problema é a ilusão de que tudo pode<br />
ser resolvido formalmente por meio de<br />
instituições impessoais.”<br />
Estas palavras são de Roberto DaMatta,<br />
antropólogo brasileiro traduzido em múltiplas<br />
línguas, autor de estudos sobre a<br />
vida quotidiana brasileira, o carnaval e o<br />
futebol, a rua e o jogo do bicho. DaMatta<br />
compilou em livro as colunas do Jornal da<br />
Tarde (1993-2001), do Estado de S. Paulo<br />
(2001-2004) e de periódicos de menor<br />
difusão, sob o título sedutor de<br />
Tocquevilleanas – Notícias da América (Rio de<br />
Janeiro, Rocco, 2005). o autor foi professor<br />
da Universidade de Notre Dame<br />
(Indiana) durante os dezassete anos a que<br />
correspondem estes ensaios e crónicas.<br />
o contraste entre os tipos de sociedade<br />
a que DaMatta alude remete para as teses<br />
de Edward hall (Beyond Culture). Nas sociedades<br />
pobres em contexto (as anglo-americanas)<br />
os códigos comunicativos quase dispen-<br />
sam a compreensão aprofundada do<br />
ambiente circundante. Nas culturas ricas<br />
em contexto (as sul-americanas), a comunicação<br />
interpessoal e não-verbal relega<br />
para segundo plano a lei, a regra ou o<br />
código. DaMatta não afirma coisa diferente:<br />
“No Brasil todo o mundo personaliza;<br />
aqui (nos Estados Unidos) todo o mundo<br />
impessoaliza”.<br />
Textos jornalísticos, mas simultaneamente<br />
ensaios de investigador que procura<br />
evitar que “os factos canibalizem as teorias<br />
ou, para ser menos pedante, os vários<br />
estilos pelos quais os acontecimentos são<br />
anestesiados de suas repercussões pelo uso<br />
de receitas interpretativas rotineiras”. Ao<br />
contrário dos que se encerram no jargão<br />
especializado, Roberto DaMatta assume<br />
a sua atitude de procurar traduzir para<br />
públicos mais vastos os resultados da pesquisa<br />
e da reflexão universitárias.<br />
o contraste entre sociedades desenvolvidas<br />
e “pobres em contexto” e sociedades<br />
em vias de desenvolvimento “ricas em<br />
contexto” – teorizado por Edward hall –<br />
não adquire na obra do antropólogo bra-<br />
mário mesQuitA<br />
um tocqueville antropólogo e brasileiro<br />
em pleno século xxi.<br />
sileiro significado normativo. Equivale<br />
antes a um esforço de interpretação.<br />
A ilusão anglo-americana é que tudo pode<br />
ser resolvido sem a interferência das relações<br />
entre as pessoas, através do respeito<br />
da legalidade e do culto das instituições.<br />
A ilusão sul-americana é que a amizade e<br />
o compadrio bastam para regular a socie-<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008