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edição de 26 de agosto de 2019

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STORYTELLER<br />

Lisa5201/iStock<br />

Conheci<br />

o inferno<br />

Não se trata <strong>de</strong> uma metáfora.<br />

Estou falando do inferno<br />

bíblico, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> não se sai<br />

LuLa Vieira<br />

Eu vou contar como conheci o inferno.<br />

Não se trata <strong>de</strong> uma metáfora. Estou<br />

falando do inferno bíblico, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> não<br />

se sai. A freira Josefa Menen<strong>de</strong>z explica: o<br />

inferno é cheio <strong>de</strong> corredores longos, sombrios<br />

e com fogo eterno. Além disso, cada<br />

pessoa con<strong>de</strong>nada per<strong>de</strong> a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

sentir amor, felicida<strong>de</strong>, esperança ou qualquer<br />

coisa além <strong>de</strong> cruelda<strong>de</strong> e miséria. Em<br />

um dos trechos escritos por ela, há o relato<br />

<strong>de</strong> uma alma que chora compulsivamente<br />

imaginando como seria sentir amor novamente.<br />

Pois eu conheci on<strong>de</strong> isso acontece.<br />

Digo mais: vi com estes olhos que um<br />

dia a terra há <strong>de</strong> comer, um retrato <strong>de</strong>sse<br />

lugar que é a ameaça permanente aos ímpios.<br />

Como diria minha finada avó, mulher<br />

<strong>de</strong> linguajar finíssimo: o inferno é foda! Se<br />

algo me pu<strong>de</strong>sse convencer <strong>de</strong> fazer o bem<br />

nessa vida, <strong>de</strong> não <strong>de</strong>sejar a mulher do próximo,<br />

seria me ameaçar repetir a experiência.<br />

Abram os ouvidos, oh ímpios! Vou contar<br />

o que passei.<br />

Eu trabalhava na Thompson e estava<br />

numa reunião em Miami. Aconteceu uma<br />

emergência no Rio e me pediram para antecipar<br />

a volta. Minha passagem era Varig e<br />

a filial <strong>de</strong> Miami da empresa me tirou qualquer<br />

esperança <strong>de</strong> antecipação da viagem.<br />

Era alta temporada e nem o Rubem Berta<br />

conseguiria um voo sem reserva, exagero<br />

da gerente local, mas dramático o suficiente<br />

para que eu enten<strong>de</strong>sse que estava ouvindo<br />

um não <strong>de</strong>finitivo.<br />

Como bom brasileiro, tentei todos os<br />

pistolões, inclusive ir para Nova York e <strong>de</strong><br />

lá para o Brasil. Mas nenhuma opção se<br />

encaixava no prazo que eu tinha para chegar<br />

ao Rio <strong>de</strong> Janeiro. Estava entrando em<br />

<strong>de</strong>sespero quando uma secretária <strong>de</strong> nosso<br />

escritório local disse que conhecia a gerente<br />

do escritório da Pan Am e iria pedir uma<br />

ajuda. A tal amiga <strong>de</strong> nossa secretária era<br />

uma velinha, que vestia um xale escuro e<br />

meias pretas. Só não digo que usava vassoura<br />

para chegar ao trabalho porque era<br />

uma boa pessoa. Ao ouvir nosso pedido por<br />

uma passagem ela disse que só tinha um<br />

lugar no próximo voo, mas se eu tivesse o<br />

mínimo juízo não <strong>de</strong>veria aceitar. Era preferível,<br />

disse-me ela, per<strong>de</strong>r o negócio ou o<br />

emprego. Mas eu estava <strong>de</strong>sesperado e não<br />

quis ouvir.<br />

A Thompson precisava <strong>de</strong> mim. E eu não<br />

po<strong>de</strong>ria imaginar qual a razão <strong>de</strong>sse voo<br />

em particular ser tão ruim. Um inocente. A<br />

velhinha me explicou que o avião todo (um<br />

747) estava reservado a excursões <strong>de</strong> uma<br />

gran<strong>de</strong> operadora <strong>de</strong> turismo brasileira. E<br />

que eu teria <strong>de</strong> viajar junto com as crianças,<br />

cuja maioria estava sem os pais, aos cuidados<br />

<strong>de</strong> guias da empresa. Achei um exagero.<br />

O que umas criancinhas po<strong>de</strong>riam ser<br />

<strong>de</strong> tão perigosas?<br />

Ela <strong>de</strong>u um sorriso que significava: “espere<br />

para ver!”. Poucas horas <strong>de</strong>pois embarquei.<br />

Para a pior viagem <strong>de</strong> minha vida.<br />

Era a volta. Os guias já não falavam mais<br />

com as crianças e elas, por sua vez, já tratavam<br />

os guias pelos mais escabrosos apelidos<br />

que se po<strong>de</strong> imaginar. E gritavam, jogavam<br />

coisas uns nos outros. Trocavam insultos<br />

preconceituosos, racistas, violentos.<br />

Os mais adolescentes se beijavam <strong>de</strong>scaradamente,<br />

os mais infantis corriam entre as<br />

poltronas aos gritos.<br />

Eram centenas. Tudo pulando. As comissárias<br />

serviram o almoço como quem<br />

serve ração. O que era justíssimo em relação<br />

ao grau <strong>de</strong> animalida<strong>de</strong>. Chicletes<br />

foram grudados em cabelos, os banheiros<br />

ficaram imundos em menos <strong>de</strong> duas horas,<br />

o filme foi acompanhado <strong>de</strong> insultos aos vilões<br />

nos termos mais mimosos: “Filho da<br />

puta!”, “Viado!” Teve até um “corno” que<br />

eu não me lembrava que pu<strong>de</strong>sse ser um<br />

adjetivo ofensivo a um personagem <strong>de</strong> <strong>de</strong>senho<br />

animado.<br />

Em três horas <strong>de</strong> viagem, eu consegui me<br />

enturmar com os guias, que se homiziaram<br />

a um canto e ficamos tentando conversar<br />

em meio à balbúrdia. De vez em quando<br />

vinha uma das crianças fazer uma queixa<br />

qualquer, normalmente atendida com total<br />

indiferença por parte dos adultos. Veio até<br />

uma fada reclamar que tinham lhe roubado<br />

a varinha. O comissário-chefe, um filósofo,<br />

acalmou a menina: um dia você acha.<br />

Quando chegamos no aeroporto eu estava<br />

consi<strong>de</strong>rando Hero<strong>de</strong>s um justo.<br />

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />

e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />

editor e professor<br />

lulavieira.luvi@gmail.com<br />

<strong>26</strong> <strong>26</strong> <strong>de</strong> <strong>agosto</strong> <strong>de</strong> <strong>2019</strong> - jornal propmark

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