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STORYTELLER<br />
Lisa5201/iStock<br />
Conheci<br />
o inferno<br />
Não se trata <strong>de</strong> uma metáfora.<br />
Estou falando do inferno<br />
bíblico, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> não se sai<br />
LuLa Vieira<br />
Eu vou contar como conheci o inferno.<br />
Não se trata <strong>de</strong> uma metáfora. Estou<br />
falando do inferno bíblico, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> não<br />
se sai. A freira Josefa Menen<strong>de</strong>z explica: o<br />
inferno é cheio <strong>de</strong> corredores longos, sombrios<br />
e com fogo eterno. Além disso, cada<br />
pessoa con<strong>de</strong>nada per<strong>de</strong> a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
sentir amor, felicida<strong>de</strong>, esperança ou qualquer<br />
coisa além <strong>de</strong> cruelda<strong>de</strong> e miséria. Em<br />
um dos trechos escritos por ela, há o relato<br />
<strong>de</strong> uma alma que chora compulsivamente<br />
imaginando como seria sentir amor novamente.<br />
Pois eu conheci on<strong>de</strong> isso acontece.<br />
Digo mais: vi com estes olhos que um<br />
dia a terra há <strong>de</strong> comer, um retrato <strong>de</strong>sse<br />
lugar que é a ameaça permanente aos ímpios.<br />
Como diria minha finada avó, mulher<br />
<strong>de</strong> linguajar finíssimo: o inferno é foda! Se<br />
algo me pu<strong>de</strong>sse convencer <strong>de</strong> fazer o bem<br />
nessa vida, <strong>de</strong> não <strong>de</strong>sejar a mulher do próximo,<br />
seria me ameaçar repetir a experiência.<br />
Abram os ouvidos, oh ímpios! Vou contar<br />
o que passei.<br />
Eu trabalhava na Thompson e estava<br />
numa reunião em Miami. Aconteceu uma<br />
emergência no Rio e me pediram para antecipar<br />
a volta. Minha passagem era Varig e<br />
a filial <strong>de</strong> Miami da empresa me tirou qualquer<br />
esperança <strong>de</strong> antecipação da viagem.<br />
Era alta temporada e nem o Rubem Berta<br />
conseguiria um voo sem reserva, exagero<br />
da gerente local, mas dramático o suficiente<br />
para que eu enten<strong>de</strong>sse que estava ouvindo<br />
um não <strong>de</strong>finitivo.<br />
Como bom brasileiro, tentei todos os<br />
pistolões, inclusive ir para Nova York e <strong>de</strong><br />
lá para o Brasil. Mas nenhuma opção se<br />
encaixava no prazo que eu tinha para chegar<br />
ao Rio <strong>de</strong> Janeiro. Estava entrando em<br />
<strong>de</strong>sespero quando uma secretária <strong>de</strong> nosso<br />
escritório local disse que conhecia a gerente<br />
do escritório da Pan Am e iria pedir uma<br />
ajuda. A tal amiga <strong>de</strong> nossa secretária era<br />
uma velinha, que vestia um xale escuro e<br />
meias pretas. Só não digo que usava vassoura<br />
para chegar ao trabalho porque era<br />
uma boa pessoa. Ao ouvir nosso pedido por<br />
uma passagem ela disse que só tinha um<br />
lugar no próximo voo, mas se eu tivesse o<br />
mínimo juízo não <strong>de</strong>veria aceitar. Era preferível,<br />
disse-me ela, per<strong>de</strong>r o negócio ou o<br />
emprego. Mas eu estava <strong>de</strong>sesperado e não<br />
quis ouvir.<br />
A Thompson precisava <strong>de</strong> mim. E eu não<br />
po<strong>de</strong>ria imaginar qual a razão <strong>de</strong>sse voo<br />
em particular ser tão ruim. Um inocente. A<br />
velhinha me explicou que o avião todo (um<br />
747) estava reservado a excursões <strong>de</strong> uma<br />
gran<strong>de</strong> operadora <strong>de</strong> turismo brasileira. E<br />
que eu teria <strong>de</strong> viajar junto com as crianças,<br />
cuja maioria estava sem os pais, aos cuidados<br />
<strong>de</strong> guias da empresa. Achei um exagero.<br />
O que umas criancinhas po<strong>de</strong>riam ser<br />
<strong>de</strong> tão perigosas?<br />
Ela <strong>de</strong>u um sorriso que significava: “espere<br />
para ver!”. Poucas horas <strong>de</strong>pois embarquei.<br />
Para a pior viagem <strong>de</strong> minha vida.<br />
Era a volta. Os guias já não falavam mais<br />
com as crianças e elas, por sua vez, já tratavam<br />
os guias pelos mais escabrosos apelidos<br />
que se po<strong>de</strong> imaginar. E gritavam, jogavam<br />
coisas uns nos outros. Trocavam insultos<br />
preconceituosos, racistas, violentos.<br />
Os mais adolescentes se beijavam <strong>de</strong>scaradamente,<br />
os mais infantis corriam entre as<br />
poltronas aos gritos.<br />
Eram centenas. Tudo pulando. As comissárias<br />
serviram o almoço como quem<br />
serve ração. O que era justíssimo em relação<br />
ao grau <strong>de</strong> animalida<strong>de</strong>. Chicletes<br />
foram grudados em cabelos, os banheiros<br />
ficaram imundos em menos <strong>de</strong> duas horas,<br />
o filme foi acompanhado <strong>de</strong> insultos aos vilões<br />
nos termos mais mimosos: “Filho da<br />
puta!”, “Viado!” Teve até um “corno” que<br />
eu não me lembrava que pu<strong>de</strong>sse ser um<br />
adjetivo ofensivo a um personagem <strong>de</strong> <strong>de</strong>senho<br />
animado.<br />
Em três horas <strong>de</strong> viagem, eu consegui me<br />
enturmar com os guias, que se homiziaram<br />
a um canto e ficamos tentando conversar<br />
em meio à balbúrdia. De vez em quando<br />
vinha uma das crianças fazer uma queixa<br />
qualquer, normalmente atendida com total<br />
indiferença por parte dos adultos. Veio até<br />
uma fada reclamar que tinham lhe roubado<br />
a varinha. O comissário-chefe, um filósofo,<br />
acalmou a menina: um dia você acha.<br />
Quando chegamos no aeroporto eu estava<br />
consi<strong>de</strong>rando Hero<strong>de</strong>s um justo.<br />
Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />
e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />
editor e professor<br />
lulavieira.luvi@gmail.com<br />
<strong>26</strong> <strong>26</strong> <strong>de</strong> <strong>agosto</strong> <strong>de</strong> <strong>2019</strong> - jornal propmark