14Saber e ato do corpoSonia AlbertiA visada <strong>de</strong> meu trabalho é a seguinte: verificar as consequências da disjunção entre ou osujeito, <strong>de</strong>terminado pelo Outro da linguagem, ou o falaser, ser pelo gozo do corpo. Se noSeminário XI Lacan propõe que o significante mortifica o ser, no momento em que entramos nocampo teórico do gozo verifica-se tal violência no corpo como falaser. Ou ainda, se «O homem é adoença mortal do animal» 1 , conforme a frase <strong>de</strong> Kojève em exergue na convocação <strong>de</strong>sse VIEncontro, a vertente disso no campo do gozo é que o corpo é pelo significante violentado <strong>de</strong> modoque o corpo presentifica o real <strong>de</strong>ssa violência. Ou seja, o gozo que <strong>de</strong>la <strong>de</strong>corre. De um lado, osujeito é efeito da inscrição significante no ser – Seminário XI – quando o Outro mor<strong>de</strong> o ser, ou,conforme a conceituação do Semiário 16, o sujeito é o que escapa da relação S1 – S2; <strong>de</strong> outro lado,o falaser é marcado por isso. É claro que no momento da <strong>de</strong>stituição subjetiva, no final <strong>de</strong> umaanálise, quando o sujeito sai <strong>de</strong> cena, o falaser tem maior possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aparecer. Na entrada emanálise e durante seu processo, o sujeito que muda <strong>de</strong> posição ainda está lá, reaparecendo inclusivea partir da restituição subjetiva, que vela o falaser ainda mais. Mas este retorna e ameaça o sujeitoem seus <strong>de</strong>senvolvimentos. O caso Patricia me mostra isso e aproxima tal mecanismo ao conceitofreudiano <strong>de</strong> reação terapêutica negativa.No primeiro momento da análise, Patricia, conta sua história e acontece uma retificaçãosubjetiva: já não é a pessoa mais perturbada da família, como se acreditava, quando pediu umaanálise. Expulsa da escola aos 11 anos, vagueou pelas ruas em grupos <strong>de</strong> adolescentes a usar todotipo <strong>de</strong> drogas. Aos 18, conheceu um rapaz que <strong>de</strong>la se enamorou e a levou para a convivência <strong>de</strong>sua família, retirando-a do mundo das drogas. Terminou a escola e entrou para a universida<strong>de</strong>. Masentão conheceu um homem. Largou tudo e foi viver com esse homem que fez <strong>de</strong>la sua secretária.Por ele <strong>de</strong>gradada, finalmente <strong>de</strong>le se separou. Passou a viver só, <strong>de</strong>ixando com ele tudo o quehaviam conquistado, ou seja, sem levar nenhum tostão. Viveu num <strong>de</strong>salento tão gran<strong>de</strong> que sópensava em se matar. Quando <strong>de</strong>cidiu mudar <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>. Começou uma nova vida, construindo umpatrimônio a partir do seu próprio trabalho. Fez um bom círculo <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>s e sua casa passou a serponto <strong>de</strong> encontro. Com a vida social bastante animada, começou a beber. Iniciou nova relação,agora com a ajuda da bebida – toxicomania que perdurou por muito tempo, ainda durante a primeirafase <strong>de</strong> sua análise. Escolada, aparentemente já não se <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong>gradar, mas isso tornou a relaçãoum inferno, e o novo casal se separou. Por falta <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo, sua vida foi piorando. Se relacionou comum rapaz que usava e abusava do patrimônio que ela construíra – à imagem do que o pai <strong>de</strong> Patriciatentara fazer com a mãe. Essa terceira relação termina, ambos embriagados no carro <strong>de</strong>la, quandoele a <strong>de</strong>ixa na estrada, a vagar sem rumo. Uma tênue saída para não se matar: ligar para a mãepedindo voltar a morar com ela. A mãe a acolhe e, muito aos pouquinhos ela se recompõe. O únicodinheiro que ganha é o do aluguel <strong>de</strong> sua casa na outra cida<strong>de</strong>. De resto, vive com o que a mãe lhedá.A primeira parte da análise foi essa, em que contou sua história e na qual ela mesma po<strong>de</strong> se<strong>de</strong>si<strong>de</strong>ntificar da posição: uma filha incapaz. Quando bebê, a mãe não tinha tempo para cuidar <strong>de</strong>la.Havia a outra filha também que, esta sim, dormia com a mãe. Ela não, ficava largada a não ser pelababá, que cuidou <strong>de</strong>la como se Patricia fosse sua filha. Durante toda infancia, a babá dava oaconchego <strong>de</strong> que Patricia precisava e escondia da mãe <strong>de</strong> Patricia os sinais da <strong>de</strong>gradação <strong>de</strong> suaadolescencia. O pai <strong>de</strong> Patricia tinha uma vida paralela. O que foi possível trabalhar no segundomomento <strong>de</strong> sua análise é que, apesar <strong>de</strong> não po<strong>de</strong>r contar <strong>de</strong> forma nenhuma com seu pai, <strong>de</strong>leherdou uma família <strong>de</strong> origem, que muitas vezes veio ao auxílio <strong>de</strong> Patricia. Patricia tinha um paino tio paterno e também no avô por afinida<strong>de</strong>. Foi muito interessante observar que quando po<strong>de</strong>verificar sua filiação paterna, em análise, Patricia a <strong>de</strong>duziu do nome, do nome que herdou do pai e1 Kojève A., L‛homme est une maladie mortelle <strong>de</strong> l‛animal , Introduction à la lecture <strong>de</strong> Hegel.
15da familia <strong>de</strong>le. Cedo, os pais <strong>de</strong> Patricia se separaram quando a mãe o encontrou, em casa,fornicando com uma amiga <strong>de</strong>la. O pai <strong>de</strong> Patricia era tão complicado que certo dia, quando ela jámorava com o homem maduro e terminara a faculda<strong>de</strong>, o pai mandou ligarem para a casa <strong>de</strong>laavisando que ele havia sido assassinado e que era para ela ir ao local on<strong>de</strong> se encontrava o cadáver.Novamente escolada, foi com seu homem. Lá chegando, o pai estava vivinho da silva...! Eleprecisava <strong>de</strong> dinheiro e essa era a única maneira que encontrou <strong>de</strong> fazer a filha ir ter com ele. Umafilha <strong>de</strong>sesperada porque encontraria o pai morto. Aos poucos, na análise, se mostrou que a irmãque dormira com a mãe na infância, era tudo menos psiquicamente equilibrada... No início <strong>de</strong> suavida adulta conseguira acumular tanto dinheiro no mercado <strong>de</strong> ações que sempre fora tida comogenial e exemplo <strong>de</strong> mulher bem sucedida. Quando Patricia começou sua análise, essa irmã já eraseparada do pai do filho <strong>de</strong>la que começou a procurar Patricia para salvá-lo das garras <strong>de</strong>ssa mãeque queria fazer <strong>de</strong>le seu objeto exclusivo. Patricia começou a compreen<strong>de</strong>r que sua loucura erauma forma <strong>de</strong> não sucumbir à loucura que atravessava a familia. Tal mudança <strong>de</strong> posição, visívelretificação subjetiva, permitiu com que começasse novos investimentos e voltou a crescer em suaprofissão. Visível até porque Patricia emagreceu rapidamente, o corpo até então disforme voltou àforma, e ela voltou a <strong>de</strong>sejar e a se mostrar <strong>de</strong>sejável. Mas mesmo assim, há inúmeras recaídas nasquais Patricia se vê novamente no lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>jeto familiar. E a cada vez que isso acontece, põe suavida em risco. Sua análise tem essas idas e vindas, agora que já não estamos no primeiro momento.Quando começa a se reerguer, é sempre novamente atravessada pela experiência errante que aacompanha <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito cedo. Seu corpo é marcado por essas recaídas, muitas cicatrizes <strong>de</strong>aci<strong>de</strong>ntes e <strong>de</strong> excessos que carrega pela vida.No Seminário 21, Lacan observa: Quando Aristóteles imputou uma alma ao animal, «fez dosaber o ato por excelência <strong>de</strong> nada menos do que o corpo» [...], <strong>de</strong>sse corpo que «se sustenta <strong>de</strong> umasubstância que [Aristóteles] chama a alma» 2 . Como escreve Colette Soler, saber bem ateu, oumistério bem ateu 3 . É verda<strong>de</strong> que o animal não tem corpo no sentido <strong>de</strong> corpo <strong>de</strong> significantes, damaneira como Lacan o <strong>de</strong>senvolvera. É verda<strong>de</strong> também que a alma é inicialmente reduzida porLacan à transposição simbólica da unida<strong>de</strong> imaginária do corpo (apud Soler, p. 72). Mas se lemos afrase <strong>de</strong> Lacan do Seminário 21 na articulação com os <strong>de</strong>senvolvimentos que faria <strong>de</strong>pois sobrelalangue, a alma <strong>de</strong> que aqui se trata é a que almina (cf. Seminário 20) 4 o campo do insabido que seassocia ao corpo como real. Corpo marcado pela lalangue que evi<strong>de</strong>ntemente não é o do animal masdo falaser, coisa que Aristóteles talvez tentou dizer quando supôs uma alma ao animalantropologizado.Foram necessários mais <strong>de</strong> dois milênios para Lacan po<strong>de</strong>r dizê-lo <strong>de</strong> uma nova forma!Quando Lacan, no Seminário 24, propõe um real suspenso ao corpo 5 (p.60), na medida emque haveria uma continuida<strong>de</strong> entre o imaginário e o real, é o próprio corpo que se torna insabido, opróprio inconsciente Real, da Une-bévue (equívoco). Massacrado no caso Patrícia: as insígnias <strong>de</strong>seus aci<strong>de</strong>ntes, sua toxicomania e a dismorfia <strong>de</strong> sua aparência <strong>de</strong> que tratou com exaustivosexercícios físicos longos e diários para reinvestir o <strong>de</strong>sejo sexual.Em A Terceira, o gozo do sentido está entre imaginário e real, e no Seminário XXIV, osentido se distingue da significação, esta última, vazio. O real suspenso ao corpo em função dacontinuida<strong>de</strong> entre imaginário e real é o próprio gozo do sentido. Fala plena, como se vê naplenitu<strong>de</strong> do sentido atribuída à fala do pai <strong>de</strong> Nelson e da qual o falaser goza.Assim como Patricia, Nelson tem uma enorme dificulda<strong>de</strong> em vir à análise. Responsabiliza,na maioria das vezes, a medicação pesada que toma. Mas também sabe, e diz, que muitas vezessimplesmente não consegue vir: as pessoas na rua falam que é homossexual e todo mundo vê que é2 «L'imputation d'une âme à l'animal fait du savoir l'acte par excellence <strong>de</strong> rien d'autre que le corps - vous voyezqu'Aristote n'était pas si à côté <strong>de</strong> la plaque - à ceci près que le corps est fait pour une activité, une ενεργεια, et quequelque part l’entéléchie <strong>de</strong> ce corps se supporte <strong>de</strong> cette substance qu'il appelle l'âme».3 Savoir bien athée, ou « Mystère bien athée, qui arrache la parole à sa dimension religieuse » Texto que convoca aoEncontro em Roma (Soler, 28/02/2009).4 âme5 Le Réel suspendu au Corps
- Page 2 and 3: 2Heteridade9O «misterio do corpo f
- Page 4 and 5: 4SumárioEDITORIAL ................
- Page 6: 6XII. LE CORPS SUBSTANCEDe l’insu
- Page 9 and 10: 91900; la psychanalyse reste confin
- Page 11 and 12: 11Enfermares del cuerpo fuera del s
- Page 13: 13fui el buey atado al carro que ca
- Page 17 and 18: 17Problemas clínicos en relación
- Page 19 and 20: 19La apuesta psicoanalíticaAbordam
- Page 22 and 23: 22Le malentendu de la jouissancever
- Page 24 and 25: 24reprend un an après Encore la qu
- Page 26 and 27: 26Du parlêtreColette SolerMa quest
- Page 28 and 29: 28jouissance, sans majuscule à aut
- Page 30 and 31: 30proyectarse de mil maneras, hasta
- Page 33 and 34: 33Impudence du dire et identificati
- Page 35 and 36: 35veut dire qu’il n’y a qu’un
- Page 37 and 38: 37agganciabile solo in un sintomo p
- Page 39 and 40: 39Un corps, en corps, encore. Statu
- Page 41 and 42: 41infanzia a età adulta, da oggett
- Page 43 and 44: 43Memories from childhood 2A hot su
- Page 46 and 47: 46Body partsLeonardo S. Rodríguez1
- Page 48 and 49: 48Psychosomatic phenomena appear in
- Page 50 and 51: 50the oppressive imposition of oral
- Page 52 and 53: 52about the weaknesses of psychoana
- Page 54 and 55: 54to the structuring of coexistence
- Page 56 and 57: 56A few years later, he contacted m
- Page 59 and 60: 59Geometría de los cuerpos errante
- Page 61 and 62: 61muscular (luchando o huyendo, por
- Page 63 and 64: 63a las zonas erógenas, en una sue
- Page 65 and 66:
65Destinos del oráculo: de la voz
- Page 67 and 68:
67Un sueño le devuelve a sus temor
- Page 69 and 70:
69cet événement.Si, comme le dit
- Page 72 and 73:
72Poder dirigirse al OtroXavier Cam
- Page 74 and 75:
74A partir de ahí puede acceder a
- Page 76 and 77:
76una suerte de barreras defensivas
- Page 78 and 79:
78El cuerpo flagrante de la épocaJ
- Page 80:
80permita hacer otra cosa que queda
- Page 83 and 84:
83Segundo Jacques Aubert, principal
- Page 85 and 86:
85O Fetiche como Fracasso do Sintho
- Page 87:
87As três condições que Marx est
- Page 90 and 91:
90Dire, comme Freud, que la vie, po
- Page 92 and 93:
92fait surnaturel due à l’interv
- Page 95 and 96:
95A letra de amor no corpo (La lett
- Page 97 and 98:
97essas cadeias entrarem em alguma
- Page 99 and 100:
99Primeiro tempo de análiseApenas
- Page 101 and 102:
101Ce que le sujet autiste nous app
- Page 103 and 104:
103de la demande.J’avais accepté
- Page 105 and 106:
105O corpo da psicanalise e a tecno
- Page 107 and 108:
107presente, pois, os psicóticos n
- Page 109 and 110:
109Em 1964 3 , o trauma toma um est
- Page 111 and 112:
111«Je n’ai pas de bouche»Que n
- Page 113 and 114:
113Le délire des négations, qui e
- Page 115 and 116:
115nell’apologo dei tre prigionie
- Page 117 and 118:
117
- Page 119 and 120:
119sua casa, as suas suspeitas se c
- Page 121 and 122:
121Corpsificação: circuito pulsio
- Page 123 and 124:
123forma de retorno do real que se
- Page 125 and 126:
125champ du partenaire sexuel, et d
- Page 127 and 128:
127
- Page 129 and 130:
129Mais pas le support de n’impor
- Page 131 and 132:
131colère chez ses parents et nota
- Page 133 and 134:
133morrer», ou «viver com o míni
- Page 135 and 136:
135Il «corpo parlante» e il miste
- Page 137 and 138:
137questa perdita —che condiziona
- Page 139 and 140:
139
- Page 141 and 142:
141lors essentiel, c’est de saisi
- Page 143 and 144:
143signifiant qui causent sa jouiss
- Page 145 and 146:
145son enfance) pour penser.Pour pe
- Page 147 and 148:
147BibliographieSOLER C. (2009), La
- Page 149 and 150:
149CorpoemaAntonio QuinetO «fala-a
- Page 151 and 152:
151Nas artes cênicas, o ator ou ba
- Page 153 and 154:
153Le miracle de l’araignéeMarc
- Page 155 and 156:
155Si parler c’est mettre en scè
- Page 157 and 158:
157en tant qu’il n’y a pas de s
- Page 159 and 160:
159satisfaction, qui est une autre
- Page 161 and 162:
161Encore: corps et répétition da
- Page 163 and 164:
163dans le transfert, il se trouve
- Page 165 and 166:
165«Mystère, mister, mi-s’taire
- Page 167 and 168:
167l’acquisition des plus-de-joui
- Page 169 and 170:
169
- Page 171 and 172:
171De l’incarnation à l’irréd
- Page 173 and 174:
173est dédoublée dans un rapport
- Page 175 and 176:
175Les impasses de la vie amoureuse
- Page 177 and 178:
177maladie»?J’ai gémi, pas seul
- Page 179 and 180:
179féminines qu’elle connut, Nat
- Page 181 and 182:
181Un cuerpo con memoria antiguaTri
- Page 183 and 184:
183también da cuenta de cómo se p
- Page 185 and 186:
185