82Alíngua e prolongamentos sintomáticosVera PolloSheila AbramovitchSão <strong>de</strong> diferentes tipos os laços que unem duas ou mais gerações. Enquanto um pai é aqueleque transmite ao filho a castração, uma mãe é aquela que lhe transmite lalíngua e funciona como a«Primeira polícia do corpo». 1 É justamente enquanto responsável por «Fazer falar o ser falante» 2que a mãe tem efeitos <strong>de</strong> inconsciente.Em O corpo falante, Colette Soler 3 refere-se ao traumatismo <strong>de</strong> lalíngua como algo que<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> primeiramente da motérialité 4 do inconsciente, ou seja, <strong>de</strong> algo que se cala, <strong>de</strong> acordo coma etimologia da palavra mot, mas também da contingência do que foi ouvido e da maneira <strong>de</strong> falar.Trata-se aí da «Palavra canção do Outro» ou «Oque há <strong>de</strong> lalado na fala articulada do Outro». 5Assim, o conceito <strong>de</strong> lalíngua é inseparável da concepção do inconsciente como da or<strong>de</strong>mdo real. Há, portanto, um gozo <strong>de</strong> lalíngua, um trauma <strong>de</strong> lalíngua logicamente anterior ao traumasexual, pois marca profundamente o corpo sem unificá-lo, afetando-o no sentido em que afetosignifica <strong>de</strong>scarga e também <strong>de</strong>svio ou <strong>de</strong>riva.Porém, nem sempre o corpo respon<strong>de</strong>, como no episódio em que Stephen, em Um retrato doartista quando jovem, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> se <strong>de</strong>ixar espancar pelos colegas, «Sentia que alguma força oestava <strong>de</strong>spojando daquela raiva subitamente tecida tão facilmente quanto um fruto é <strong>de</strong>spojado <strong>de</strong>sua casca madura e macia». 6 Isso porque Stephen «Nunca fora capaz <strong>de</strong> fazer <strong>de</strong>la [da cólera] umapaixão duradoura e sempre se sentira como se seu corpo estivesse sendo <strong>de</strong>spojado com facilida<strong>de</strong><strong>de</strong> alguma pele ou casca exterior». 7 Ora, <strong>de</strong>spojado do corpo, Stephen/Jaymes Joyce, soube fazer <strong>de</strong>lalíngua o instrumento com o qual forjou, ao longo da vida, um ego <strong>de</strong> suplência, ego corporalou,..., um corpo <strong>de</strong> assonâncias, literações e muitas vozes.Alíngua joycianaA forte musicalida<strong>de</strong> é a lalíngua que se transmite na família do escritor James Joyce. Lacanlhe dá a alcunha <strong>de</strong> «o filho necessário» para enfatizar que, somente a partir <strong>de</strong> sua obra, seu pai eaté mesmo a linhagem dos Joyce passam a existir, isto é, entram na história dos gran<strong>de</strong>s escritores edo povo irlandês. Em Joyce, o sinthoma correspon<strong>de</strong> à criação <strong>de</strong> um novo estilo, uma escritamusicada, o drama musical.Finnegans Wake, seu último livro, repleto <strong>de</strong> restos <strong>de</strong> vozes, <strong>de</strong> sons, <strong>de</strong> silêncios e <strong>de</strong>onomatopéias, torna-se um exemplo paradigmático <strong>de</strong> lalíngua. Nele há também fenômenos <strong>de</strong>pensamentos impostos, aos quais Lacan se refere como falas impostas. 8 Po<strong>de</strong>mos dizer que existetambém uma escrita imposta e que esta, através do fluxo <strong>de</strong> pensamentos, surge em forma daspalavras que lhe vêm do Outro não-barrado, como um fenômeno elementar, um automatismomental que se impõe ao sujeito. A sonorização do pensamento, presente na escrita autobiográficaimposta pelo Outro, <strong>de</strong>svela o inconsciente real a céu aberto, ou seja, lalíngua, que compareceatravés <strong>de</strong> significantes primordiais, restos <strong>de</strong> um tempo inaugural da fala do sujeito.1 Soler C. 2003, p.92.2 Lacan J. [1972-3]1985, p.133.3 Soler C. 2007.4 Neologismo em que Lacan con<strong>de</strong>nsa os vocábulos mot e matérialité, o primeiro correspon<strong>de</strong>ndo à palavra escritaliteralmente, àquilo que se cala (Cf. Sauvagnat, F. Le mot et Le cri, La Lettre Mensuelle, n. 67, 1988.5 Soler C. 2010.6 Joyce J. 2006, p. 93.7 Ibi<strong>de</strong>m, p.161.8 Lacan J. 1975, p.88.
83Segundo Jacques Aubert, principal interlocutor <strong>de</strong> Lacan no Seminário XXIII, há em Joyce«um en<strong>de</strong>reçamento ao leitor e a presença da voz na escritura, embora conservando a i<strong>de</strong>ia do que éjogado fora, do <strong>de</strong>jeto, do lixo». 9 Para Lacan, Joyce ensina também que há várias possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>enodamento dos eixos Real-Simbólico e Imaginário (RSI), mesmo no âmbito da foraclusão doNome-do-Pai.Voltemos ao uso joyciano <strong>de</strong> lalíngua, recorrendo a uma passagem <strong>de</strong> Finnegans Wake, talcomo a traduziu Donaldo Schüler sob o título <strong>de</strong> Finnicius Revém: «Volta já por or<strong>de</strong>m dosministros! E tu, leva já este barril pro lugar don<strong>de</strong> o tiraste, o bar <strong>de</strong> Mac Shane, toma o caminhoque trilharam teus anciãos, Caminho da Machadinhenterrada! Xi! Como xisparam daqui,vagabundas, todumescola<strong>de</strong>scândalos, com um fru-fru <strong>de</strong> se<strong>de</strong>svoaçante atrás <strong>de</strong>las, essas<strong>de</strong>smilinguidas perlipetas!». (J.Joyce. Finnicius Revém. 2000, p.183)É verda<strong>de</strong> que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início <strong>de</strong> sua obra, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os contos Os Dublinenses, encontramospalavras que lhe parecem: jogadas fora, ir com o vento, restos <strong>de</strong> diálogos e <strong>de</strong> conversas recolhidasno cenário <strong>de</strong> uma Dublin <strong>de</strong>vastada e humilhada. O leitor fica sempre em suspense, com asensação <strong>de</strong> que os contos acabaram antes do tempo. É uma sensação entre a perplexida<strong>de</strong> e oestranhamento. Como catador e colecionador <strong>de</strong> lixo, Joyce apanha falas e sons <strong>de</strong> homens bêbados,indo <strong>de</strong> bar em bar, ou nas vozes das mulheres que caminham pelas ruas <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> Dublin.Diremos que em Dublinenses, Joyce coleta, remenda e costura em forma <strong>de</strong> escrita, e no estilo quelhe é peculiar, as falas e os sons da cida<strong>de</strong> humilhada, tão querida quanto odiada.No encaminhamento <strong>de</strong> sua obra, autêntico work in progress, observa-se que a relação com afala lhe é cada vez mais imposta. Ao ser quebrada e <strong>de</strong>smantelada, a fala acaba por ser escrita.Dissolve-se a linguagem e com a perda da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> fonatória faz surgir a polifonia. 10 «Éexatamente esta evolução que governará o universo joyciano, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o lirismo <strong>de</strong> Música <strong>de</strong> câmeraaté a epopéia <strong>de</strong> Ulisses e o drama cômico <strong>de</strong> Finnegans Wake, universo este que, nascido darealida<strong>de</strong> mais cotidiana, atingirá aos poucos a dimensão intemporal». 11Em Finnegans Wake, Joyce <strong>de</strong>scontextualiza o significante, esvaziando-o <strong>de</strong> significado efazendo o texto literário chegar a sua materialida<strong>de</strong> última <strong>de</strong> escrita sonora. O significante, aqui,apresenta-se através <strong>de</strong> jogos em que predomina o pouco sentido, ou seja, a metonímia lúdica queaponta para o vazio <strong>de</strong> significação, exatamente como as crianças que brincam com as palavras, pormeio <strong>de</strong> assonâncias ou literações. Fenômeno típico daqueles que, <strong>de</strong>vido a pouca ida<strong>de</strong>, ainda nãoestão solidamente fixados em um discurso. A foraclusão do Nome do Pai produz o mesmoresultado: neologismos, senesteseias, interrupções, paradas, repetições, associações por assonância,<strong>de</strong>scarilhamentos, fenômenos que <strong>de</strong>svelam a falta <strong>de</strong> hierarquização significante e se localizam«Fora do discurso, mas <strong>de</strong>ntro da linguagem». 12«Aqui jazzpem os serrestos <strong>de</strong>. Uns o votam Vico, outros o motejam Miko, uns o Bub Llyname Phinam, enquantooutros o saúdam Ly Bertador, Bor Racha, Lex, Lax, Ser Viço, Ser Veja. Uns oatiçam Arto, outros o baptistam Bardo, Colle, Nolle, Solle, Villa, Velle, Valle mas eu estou porEstour A. Tim Pano, do contrário será chamado por nome nenhum. Juntos. Arre, <strong>de</strong>ixe-o a Hosty,<strong>de</strong>ixe-o a Hosty pois este é o romem para rumar as rimas, as rimas, o rei <strong>de</strong> todas as rimas. Há porcá? (Algo hão) Há por lá? (Algo não) Hás cutado? (Outros dão) Há campeado? (Outros não) Távindo, tá bramindo! O clipe, o clope! (Tudo claca) Craca creca O(klikkaklakkaklaskaklopatzklatschabattacreppycrottyGraddaghsemmihsammihnouithappluddyappladdypkonpkot!) ».[ J.Joyce Finnicius Revém. 2000, p.51]Sabemos que Lucia, filha <strong>de</strong> Joyce, recebeu <strong>de</strong> Jung o diagnóstico <strong>de</strong> esquizofrenia e que opai foi contrário ao diagnóstico, consequentemente, ao tratamento. Contam os biógrafos que,somente no fim <strong>de</strong> sua vida, Joyce consentiu que a internasse, fato que, contribuiu para os longosperíodos <strong>de</strong> silêncio mantidos pelo escritor, mesmo em companhia dos amigos e familiares. Lacanressalta que Joyce atribui a Lúcia alguma coisa que está no prolongamento <strong>de</strong> seu próprio sintoma:9 Aubert J. 2001, p.117.10 Lacan J. [1975-76], 2007, p.93.11 Paris J. 1992,p. 54.12 Lacan J., 1954-5.
- Page 2 and 3:
2Heteridade9O «misterio do corpo f
- Page 4 and 5:
4SumárioEDITORIAL ................
- Page 6:
6XII. LE CORPS SUBSTANCEDe l’insu
- Page 9 and 10:
91900; la psychanalyse reste confin
- Page 11 and 12:
11Enfermares del cuerpo fuera del s
- Page 13 and 14:
13fui el buey atado al carro que ca
- Page 15 and 16:
15da familia dele. Cedo, os pais de
- Page 17 and 18:
17Problemas clínicos en relación
- Page 19 and 20:
19La apuesta psicoanalíticaAbordam
- Page 22 and 23:
22Le malentendu de la jouissancever
- Page 24 and 25:
24reprend un an après Encore la qu
- Page 26 and 27:
26Du parlêtreColette SolerMa quest
- Page 28 and 29:
28jouissance, sans majuscule à aut
- Page 30 and 31: 30proyectarse de mil maneras, hasta
- Page 33 and 34: 33Impudence du dire et identificati
- Page 35 and 36: 35veut dire qu’il n’y a qu’un
- Page 37 and 38: 37agganciabile solo in un sintomo p
- Page 39 and 40: 39Un corps, en corps, encore. Statu
- Page 41 and 42: 41infanzia a età adulta, da oggett
- Page 43 and 44: 43Memories from childhood 2A hot su
- Page 46 and 47: 46Body partsLeonardo S. Rodríguez1
- Page 48 and 49: 48Psychosomatic phenomena appear in
- Page 50 and 51: 50the oppressive imposition of oral
- Page 52 and 53: 52about the weaknesses of psychoana
- Page 54 and 55: 54to the structuring of coexistence
- Page 56 and 57: 56A few years later, he contacted m
- Page 59 and 60: 59Geometría de los cuerpos errante
- Page 61 and 62: 61muscular (luchando o huyendo, por
- Page 63 and 64: 63a las zonas erógenas, en una sue
- Page 65 and 66: 65Destinos del oráculo: de la voz
- Page 67 and 68: 67Un sueño le devuelve a sus temor
- Page 69 and 70: 69cet événement.Si, comme le dit
- Page 72 and 73: 72Poder dirigirse al OtroXavier Cam
- Page 74 and 75: 74A partir de ahí puede acceder a
- Page 76 and 77: 76una suerte de barreras defensivas
- Page 78 and 79: 78El cuerpo flagrante de la épocaJ
- Page 80: 80permita hacer otra cosa que queda
- Page 85 and 86: 85O Fetiche como Fracasso do Sintho
- Page 87: 87As três condições que Marx est
- Page 90 and 91: 90Dire, comme Freud, que la vie, po
- Page 92 and 93: 92fait surnaturel due à l’interv
- Page 95 and 96: 95A letra de amor no corpo (La lett
- Page 97 and 98: 97essas cadeias entrarem em alguma
- Page 99 and 100: 99Primeiro tempo de análiseApenas
- Page 101 and 102: 101Ce que le sujet autiste nous app
- Page 103 and 104: 103de la demande.J’avais accepté
- Page 105 and 106: 105O corpo da psicanalise e a tecno
- Page 107 and 108: 107presente, pois, os psicóticos n
- Page 109 and 110: 109Em 1964 3 , o trauma toma um est
- Page 111 and 112: 111«Je n’ai pas de bouche»Que n
- Page 113 and 114: 113Le délire des négations, qui e
- Page 115 and 116: 115nell’apologo dei tre prigionie
- Page 117 and 118: 117
- Page 119 and 120: 119sua casa, as suas suspeitas se c
- Page 121 and 122: 121Corpsificação: circuito pulsio
- Page 123 and 124: 123forma de retorno do real que se
- Page 125 and 126: 125champ du partenaire sexuel, et d
- Page 127 and 128: 127
- Page 129 and 130: 129Mais pas le support de n’impor
- Page 131 and 132:
131colère chez ses parents et nota
- Page 133 and 134:
133morrer», ou «viver com o míni
- Page 135 and 136:
135Il «corpo parlante» e il miste
- Page 137 and 138:
137questa perdita —che condiziona
- Page 139 and 140:
139
- Page 141 and 142:
141lors essentiel, c’est de saisi
- Page 143 and 144:
143signifiant qui causent sa jouiss
- Page 145 and 146:
145son enfance) pour penser.Pour pe
- Page 147 and 148:
147BibliographieSOLER C. (2009), La
- Page 149 and 150:
149CorpoemaAntonio QuinetO «fala-a
- Page 151 and 152:
151Nas artes cênicas, o ator ou ba
- Page 153 and 154:
153Le miracle de l’araignéeMarc
- Page 155 and 156:
155Si parler c’est mettre en scè
- Page 157 and 158:
157en tant qu’il n’y a pas de s
- Page 159 and 160:
159satisfaction, qui est une autre
- Page 161 and 162:
161Encore: corps et répétition da
- Page 163 and 164:
163dans le transfert, il se trouve
- Page 165 and 166:
165«Mystère, mister, mi-s’taire
- Page 167 and 168:
167l’acquisition des plus-de-joui
- Page 169 and 170:
169
- Page 171 and 172:
171De l’incarnation à l’irréd
- Page 173 and 174:
173est dédoublée dans un rapport
- Page 175 and 176:
175Les impasses de la vie amoureuse
- Page 177 and 178:
177maladie»?J’ai gémi, pas seul
- Page 179 and 180:
179féminines qu’elle connut, Nat
- Page 181 and 182:
181Un cuerpo con memoria antiguaTri
- Page 183 and 184:
183también da cuenta de cómo se p
- Page 185 and 186:
185