10.07.2015 Views

Revista de Psicanálise

Revista de Psicanálise

Revista de Psicanálise

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

84ele sofre <strong>de</strong> falas impostas, por isso diz que sua filha é telepata, indicando que ele crê que ela recebeo pensamento dos outros. 13Alíngua na <strong>de</strong>vastação mãe-filhaO fragmento <strong>de</strong> caso que traremos discute a hipótese <strong>de</strong> um prolongamento sintomático não<strong>de</strong> dois sujeitos psicóticos, mas <strong>de</strong> mãe-filha neuróticas. Os primeiros sintomas <strong>de</strong> lúpus 14 <strong>de</strong> Taíscoincidiram com a primeira separação <strong>de</strong> mãe e filha, durante as férias escolares. Taís emagreceusete quilos em um mês, apresentou dores nas ‘dobras’ ou ‘juntas’ e leucopenia. Em seis anos <strong>de</strong>atendimento, ela se referiu apenas duas vezes a sua doença. Na primeira <strong>de</strong>clarou: «Eu <strong>de</strong>veria estarcomemorando hoje, porque faz um ano que não preciso <strong>de</strong> medicação» e na segunda, que haviaconhecido uma prima <strong>de</strong> sua mãe e <strong>de</strong>scoberto que essa também tem lúpus.Rosa, a mãe, a chamava pelo apelido <strong>de</strong> ‘Nem’, contração da palavra neném, e tambémadvérbio <strong>de</strong> negação que, expressa «duas vezes não»: nem isto nem aquilo. Porém, por si só, nadasignifica. É necessário acrescentar-lhe um objeto.Segundo a fala materna, a filha, muito <strong>de</strong>sejada, porquanto caçula e única mulher <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>quatro homens foi propensa a estados febris durante a infância, sempre que o pai se ausentava. Rosaé capaz <strong>de</strong> recordar-se do quanto lhe era difícil segurar a filha ao colo nos primeiros meses <strong>de</strong> vida,por temer machucá-la ou <strong>de</strong>ixá-la cair. Rosa relata um pesa<strong>de</strong>lo que teve no início do tratamento dafilha. Ela sonha que Taís está sendo abusada sexualmente pelo pai, mas a figura do sonho tinha onome da filha, mas não a sua imagem. No entanto, chama a atenção que Taís nunca veio à análise<strong>de</strong>sacompanhada da mãe, assim como não saía <strong>de</strong> casa para nenhum lugar.As sessões <strong>de</strong> Taís consistiam em pequenas falas sobre Mimi, sua gatinha. Relatava se ofelino comera ou não, se ele se escon<strong>de</strong>ra ou não, se fugira ou não <strong>de</strong> casa, se fora ou nãoperseguido pelo gato da vizinha, quem lhe <strong>de</strong>ra comida ou na cama <strong>de</strong> quem ele dormira, comvariações mínimas. Simultaneamente, expunha seu braço cheio <strong>de</strong> marcas; arranhões feitos porMimi. Os arranhões po<strong>de</strong>riam ser consi<strong>de</strong>rados uma forma <strong>de</strong> cifrar o gozo do fenômenopsicossomático, já que este concomitantemente regredia. Pareciam-nos figurações do traço unário,enquanto significante que comemora uma irrupção <strong>de</strong> gozo ou significantes-mestres que nãoencontram seus S2, representantes da representação.Algum tempo <strong>de</strong>pois, relata uma pequena viagem que fez com a mãe e um irmão, na qualexperimentou «a aventura <strong>de</strong> não saber on<strong>de</strong> estava», pois «erraram várias vezes <strong>de</strong> caminho». Maisadiante, Taís expressa o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ir morar numa comunida<strong>de</strong> religiosa, em que as pessoas nãoprecisam <strong>de</strong> dinheiro, pois vivem do que plantam e colhem. Não preten<strong>de</strong> casar-se nem ter filhos.Diremos, então, que seu percurso analítico a conduziu do gozo opaco à significantização do <strong>de</strong>sejocomo «<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo», <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> sustentar o <strong>de</strong>sejo dos genitores que a haviam <strong>de</strong>signado como«a-filhada <strong>de</strong> um padre»; alguém que fez votos <strong>de</strong> castida<strong>de</strong>. Quanto ao significante «mimi», nomedo felino, é o pronome reflexivo da primeira pessoa do singular ‘mim’, que se <strong>de</strong>sdobra emexpressões como para mim, <strong>de</strong> mim, comigo,...Ao final, duas hipóteses: a primeira relativa à presença do felino como elemento propiciadordo encontro <strong>de</strong> lalíngua com o gozo; a segunda sobre a contribuição dos Uns <strong>de</strong> lalíngua à natureza<strong>de</strong>vastadora da relação mãe-filha.13 Lacan J. [1975-76]2007, p. 93.14 Lúpus eritematoso sistêmico. Segundo a medicina, doença auto-imune <strong>de</strong> causa parcialmente <strong>de</strong>sconhecida e quepo<strong>de</strong> acometer somente a pele ou a pele e diversos órgãos, em diferentes graus.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!