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Revista de Psicanálise

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149CorpoemaAntonio QuinetO «fala-a-ser» ao sofrer os efeitos <strong>de</strong> lalíngua, <strong>de</strong>snaturaliza não só a natureza como aprópria linguagem que não tem nada <strong>de</strong> natural. O que cada um faz com o que recebe da línguamaterna é o que lhe dará sua particularida<strong>de</strong> como ser corporal que é falante. É uma relação <strong>de</strong>criação pois cada um terá sua «linguagem» própria, não apenas <strong>de</strong> falar, mas sua maneira <strong>de</strong> andar,dançar, cantar, se posicionar e se relacionar pois essa incidência <strong>de</strong> lalíngua se dará em seu corpo.Assim o corpo do fala-a-ser não tem nada <strong>de</strong> natural, ele é <strong>de</strong>snaturalizado ao receber o banho <strong>de</strong>lalingua.De sua relação com lalíngua surge o homem como o «cabeça da arte» e <strong>de</strong>ssa forma, apontaLacan, ele se <strong>de</strong>snaturaliza e toma por objetivo «natural» a arte. É o que faz, Colette Soler dizer que«o corpo não é um produto da natureza, ele é, antes, um produto da arte». Assim, Lacan se alinha aAristóteles <strong>de</strong> A Poética que afirma que o homem é um ser da mímesis, que não <strong>de</strong>ve ser traduzidapor imitação e sim como representação. O homem é um ser que, naturalmente, ten<strong>de</strong> a representar oque vê, ouve, sente, pensa e sonha. E seu gran<strong>de</strong> exemplo é a tragédia que é representação,performance, mise-em-scène <strong>de</strong> uma ação. O paradigma da obra da arte é o corpo em cena fazendouma performance <strong>de</strong> uma ação. Trata-se <strong>de</strong> colocar no palco a poesia do autor que será vivificada eencarnada pelos corpos falantes dos atores. O teatro é o lugar da letra viva, da poesia no corpo emtempo real. O homem ter uma tendência natural para a mímesis significa que o homem é um serpara-a-arte.O natural do homem, diz Lacan, não é a natureza e sim a arte e ele po<strong>de</strong> então«orgulharte-se».Se Joyce se consi<strong>de</strong>rava um artista, Lacan não se consi<strong>de</strong>rava como tal, e sim como obra <strong>de</strong>arte. «Não sou um poeta, diz ele, mas um poema.» Se para Nietzsche é a pulsão artística dionisíaca,para Lacan é o real que faz com que o artista se transforma em obra <strong>de</strong> arte. Esse poema – que ele écomo fala-a-ser – se escreve, mas não é um sujeito, nos indica Lacan, mesmo que ele tenha ares <strong>de</strong>um sujeito. Ao se transmutar em poema, o sujeito <strong>de</strong>saparece e o falasser se escreve. Atransformação em obra <strong>de</strong> arte correspon<strong>de</strong> a uma <strong>de</strong>stituição subjetiva. Lá on<strong>de</strong> o ser falante viraobra <strong>de</strong> arte o sujeito <strong>de</strong>saparece mas se escreve. Ao morrer ele espirra a sua tinta – a tinta <strong>de</strong>lalíngua que escreve seu corpo, nos dois sentidos: que faz seu corpo escrever e faz uma escritura emseu corpo, seu corpoema.Para que o ser-para-a-arte se manifeste é necessário a <strong>de</strong>stituição subjetiva com oconseqüente esvaziamento <strong>de</strong>sses significantes que <strong>de</strong>terminam sua repetição inconsciente e suahistória. O ator, como diz Novarina, vem morrer em cena. Pois se <strong>de</strong>ssubjetiva para po<strong>de</strong>r sercorpoema. O artista, a partir <strong>de</strong>ssa indicação <strong>de</strong> Lacan, não faz obra <strong>de</strong> arte ele é arte.Essa natureza do homem, a que o faz ser o cabeça da arte, ele «só toca nela como sintoma.»O homem sintomatiza através da arte. Se seu paradigma é Joyce que faz da arte seu sintoma, ele nosaponta aqui para uma generalização da arte como sintoma, quando situa a arte como o natural dohomem sendo que é a arte que lhe confere um corpo. Esse sintoma é a maneira como lalíngua se<strong>de</strong>posita para o falasser, como corpo falante.Freud se referiu na famosa carta 52 ao processo <strong>de</strong> tradução dos eventos psíquicos e dosaci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>ssa tradução nas diversas instâncias. O sintoma é compreendido como um <strong>de</strong>feito <strong>de</strong>tradução. Com o conceito do traumatismo <strong>de</strong> lalíngua constituindo o Inconsciente real, po<strong>de</strong>mosdizer que a operação que o corpo falante realiza é da or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> uma transcriação – termo criado porHaroldo <strong>de</strong> Campos para se referir a uma tradução que leva em conta as particularida<strong>de</strong>s da línguafonte, ou seja, sua somatória única e exclusiva <strong>de</strong> equívocos, e sua incidência na língua alvo (datradução). Trata-se <strong>de</strong> uma tradução criativa, para além do significado, que o tradutor utiliza alicença poética, e po<strong>de</strong> reivindicar sua autoria. O falasser transcria a língua materna em sua. E fazcom ela um corpo transcriado em letra – um corpoema. Assim, o ser-corpo é esculpido pela chuva<strong>de</strong> marteladas <strong>de</strong> lalíngua traumática constituindo um corpo-leito para se escrever a história, a

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