Cecília Meireles - Olhinhos de Gato (pdf)(rev) - Português
Cecília Meireles - Olhinhos de Gato (pdf)(rev) - Português
Cecília Meireles - Olhinhos de Gato (pdf)(rev) - Português
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Amontoaram-lhe no prato o pirão <strong>de</strong> milho, e viraram-lhe,<br />
ao lado, umas colheradas do ensopado <strong>de</strong> bofe e coração. O gato<br />
lambia-se. "Bem cheiroso que está!" Disse e passou a língua pela<br />
colher, numa experiência. Provou, provou — e animou-se a uma<br />
colher cheia. (A cara <strong>de</strong> nojo que Dentinho <strong>de</strong> Arroz fazia, com o<br />
seu olhinho estrábico e o sinalzinho suspenso no sorriso!) "Arre!"<br />
Largou o prato em cima da mesa, e saiu soprando, com a boca<br />
toda encarnada. "Tem fogo!" E, como se houvesse mesmo um<br />
incêndio, abriu a boca embaixo da bica.<br />
queimadas!<br />
Dentinho <strong>de</strong> Arroz sacudia a cabeça e ria-se baixinho.<br />
— É preciso tomar uma coisa! Vou ficar com as tripas<br />
E abanava a boca com o avental.<br />
E o dia continuava.<br />
Por fim, já tinham passado todos os ven<strong>de</strong>dores. Já se tinha<br />
comprado. Já se tinha vivido. Escurecia. Embora acen<strong>de</strong>ssem os<br />
bicos <strong>de</strong> gás, a rua ficava numa sombra <strong>de</strong>nsa <strong>de</strong> fuligem. Apenas<br />
— uma sombra balouçante, pelo palpitar das estrelas, dos vaga-<br />
lumes e dos cacos <strong>de</strong> vidro.<br />
Então, uma voz risonha, leve, uma voz ainda sem tormento,<br />
vinha cantando, cada vez mais perto:<br />
"Sorvetinho, sorvetão,<br />
sorvetinho <strong>de</strong> ilusão,<br />
quem não tem duzentos réis<br />
não toma sorvete, não."<br />
Uma pausa <strong>de</strong> uns três ou quatro passos. Depois:<br />
"Sorrrrrrrvete, iaiá!