Cecília Meireles - Olhinhos de Gato (pdf)(rev) - Português
Cecília Meireles - Olhinhos de Gato (pdf)(rev) - Português
Cecília Meireles - Olhinhos de Gato (pdf)(rev) - Português
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
pinturas azuis e cor-<strong>de</strong>-rosa; os colchões com pedaços <strong>de</strong> palha<br />
saindo; as esteiras enroladas, os regadores, os bancos <strong>de</strong> pés em<br />
forma <strong>de</strong> W. . . E a menina singularmente se transportava para a<br />
casa ao longe vazia, com o jardim triste <strong>de</strong> on<strong>de</strong> <strong>de</strong>viam ter vindo<br />
aquelas plantas, e a pare<strong>de</strong> em que ficara sozinho o prego on<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>penduravam a gaiola do pássaro.<br />
... Tudo isso porque a lembrança mais remota da sua vida<br />
era também um quarto <strong>de</strong> on<strong>de</strong> saíam e entravam homens como<br />
aquele, com toalhas enroladas na cintura, e bigo<strong>de</strong>s espessos,<br />
levando nos braços os pedaços dos móveis <strong>de</strong>sarmados. Só uma<br />
cama ainda restava inteira, e um banquinho baixo, como aqueles<br />
em forma <strong>de</strong> W. O banquinho estava encostado à pare<strong>de</strong>, perto<br />
talvez <strong>de</strong> uma janela. E na cama estava <strong>de</strong>itada a moça, que <strong>de</strong><br />
repente se sentou, passando as pernas para o lado <strong>de</strong> fora. Nesse<br />
momento, eram só duas pessoas: ela e a menina. Depois, não<br />
havia nada. Que se passou? Para on<strong>de</strong> foram? Como<br />
<strong>de</strong>sapareceram as duas figuras? A moça tinha cabelos pretos, e<br />
estava toda <strong>de</strong> branco.<br />
Todas as vezes que ela pedia que lhe explicassem on<strong>de</strong> era,<br />
quem era, Boquinha <strong>de</strong> Doce ficava impressionada e triste. Mas,<br />
um dia, fez um esforço, e <strong>de</strong>clarou, em voz baixa: "Tua mãe." Tão<br />
baixinho que falou! Quase não entreabriu os lábios. Quase não<br />
<strong>de</strong>scerrou os <strong>de</strong>ntes.<br />
Mais tar<strong>de</strong>, esteve comentando essas lembranças com<br />
outras pessoas. "Tão pequenina, meu Deus! Tão pequenina! Como<br />
é que po<strong>de</strong> ter guardado aquilo?"<br />
Então, OLHINHOS DE GATO, ali perto, recompunha <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>de</strong> si aquela visão. E sofria por não sentir a figura com mais<br />
clareza: via o movimento, a cor da roupa, o <strong>de</strong>senho sumário das<br />
pernas e dos braços. O cabelo preto contornava um rosto vago.